a ilusão é um pneu furado, rasgado de lado a lado, parecendo uma bexiga murcha, um balão sem dono trepidando contra o asfalto seco. e você está ali, dirigindo feito um doido, sorriso estampado na cara. a baba lavando os cantos dos lábios. os dentes amarelos, quase verde musgo, como se o mofo da ira os cobrisse. com os olhos inchados e mapeados em sangue, igual aqueles desenhos loucos que a garotada vibra quando isto acontece. e você está ali, metendo pressão no acelerador, pisando forte, enfiando o pé na lama, esmagando o solado contra toda opressão que você recebeu dos skinheads na terceira “b”, em 1999, enquanto tentava ser livre caminhando por aí com uma camiseta do sex pistols, um canivete sem fio e alguns pinos, pois trabalhava de “mula” para algum traficante da zona leste. as ruas estão abismadas. as bocas de lobo estão escancaradas como um índio experimentando a gota de chuva. os postes se inclinam como palmeiras em um vendaval. pinheiros arrebentam no meio, estouram seus nós. e toda a humanidade aponta para o teu carro. dedos em riste. louco, louco, louco! – gritam aqueles que viram teu carro passar como um risco, como um rasgo, sem rastro, sem placa ou pátria-mãe. e você manda todos se foderem. dedos médios para o alto. e você manda todos se foderem. você faz aquele sinal chulo de “banana”, colocando um braço no meio do outro e levantado um punho cerrado. você morde o lábio inferior até o sangue jorrar uma mínima gota rubra. e você diz entre os dentes, quase que em bruxismo e pausando sílabas: “vão – se – fo – de – rem!”. tudo isto pois você está louco para dirigir numa autoestrada, em uma rodovia limpa. você só quer cortar as pradarias, ver os eucaliptos passarem como códigos de barras, você não quer nada até ver aquele tanque vazio e o cabo esfumaçando. você não quer nada além daquela roda no osso, borracha lascada no asfalto. quem sabe o volante quebrado ao meio, o câmbio da direção fincado na tua garganta. o carro feito uma lata de sardinha chutada contra um muro qualquer. você vai olhar o céu claro, lá no final dos morros e dizer aos paramédicos: “hoje o sol está mais perto. hoje o dia foi lindo.”
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Felipe Pauluk é um curitibano residente em Londrina, jogou na loteria da vida e, numa quina, tirou o menor prêmio, a literatura. Lançou seu primeiro livro, Meu Tempo de Carne e Osso, em 2011. Hit The Road, Jack (romance), em 2012. Em 2015, outro romance, Town. Em 2016 lançou dois livros de poesia, Comida di butequim e Tórax de São Sebastião. Manual Prático de Perna Mecânico para Cantores é o seu mais recente lançamento, pela Bar Editora. Além de escritor, Pauluk também é roteirista e diretor de clipes