LATAS VIRADAS – MARCELO NOCELLI

(OU LOUCURAS DE AGOSTO)

Ontem à noite – virada do último dia de julho para o primeiro de agosto, noite de lua cheia – voltando para casa, encontrei um cachorro em situação muito difícil. Ele revirava pequenas sacolas plásticas de lixo na frente de um bar e acabou entalando o focinho numa delas. Rapidamente a sacola lhe cobriu toda a cabeça. Uma verdadeira cena de desenho animado. Apesar do desespero do animal em se livrar da carapuça, a cada tentativa, mais a sacola plástica lhe enroscava. Parei e fiquei observando. Esperando que ele parasse quieto e eu pudesse lhe ajudar. Que falta lhe fazia duas mãos e um cérebro naquele momento. As patas desordenadas não eram autossuficientes para o serviço. Depois de algumas cabeçadas aqui e ali, ofegante, ele finalmente cansou e desistiu, mas a cada respiração o saco plástico se comprimia, abalizando o focinho. Me lembrou uma imagem de tortura dos tempos da ditadura, só que canina. Aproximei-me, na intenção de livrá-lo de tal incomodo. Assustado, sem poder enxergar e perceber minhas reais intenções, o bicho se pôs a correr desesperado, rosnando num som plastificado. Deixei-o sumir por entre as ruas já desertas. Bem poderia ser que ele ainda me agradecesse o favor com uma mordida, foi o que pensei, depois, na tentativa de livrar-me da consciência pesada.

Continuei meu caminho olhando para tantos outros sacos de lixo pela calçada das ruas do bairro de Santana. O que passaria na cabeça do cão naquele momento? O mundo dentro de um saco de lixo não deve oferecer uma visão atraente ou aromas agradáveis. Naquela noite, qualquer coisa me ligou àquele cachorro magro e abandonado à própria sorte. Um autêntico “vira-latas” (em tempos de sacolas plásticas).

Em casa, a falta de sono e o episódio do cachorro me levaram a reler a crônica: “Complexo de vira-latas” texto onde Nelson Rodrigues ilustrava a inferioridade em que o brasileiro se colocava, voluntariamente, em face ao resto do mundo. O texto, bem-humorado, faz uma analogia do contexto social com o futebol. Dizia ele que esse complexo de vira-latas é um problema que o brasileiro tem de fé em si mesmo. O disfarce de um otimismo inconfesso e envergonhado. Pior é saber que algo escrito há tanto tempo, ainda pode ser contextualizado nos dias de hoje. Todos os entendidos de futebol do mundo dizem que o Brasil tem os melhores jogadores, o futebol arte, porém, nas últimas duas Copas chegamos ao auge do viralatismo. A vergonhosa derrota para a Alemanha em 2014 (em casa) e a queda de Neymar, digo, do Brasil diante do bom time da Bélgica, agora em 2018. Nelson Rodrigues – que foi poupado de ver o Brasil perder por 7 x 1 (já que isso nunca havia acontecido antes) e de ver nosso maior craque rolar no chão em vez de fazer a bola rolar – dizia que: “no fundo do seu íntimo, o brasileiro se achava o melhor do mundo, mas perante os outros, uma humildade auto-imposta e o medo de uma frustração sempre dá lugar a uma auto-humilhação antecipada.” Mas tudo isso é coisa do passado (inclusive a Copa do Mundo). Os brasileiros estão evoluindo muito nos últimos tempos. Já não sofremos mais do Complexo de Vira-latas. Pelo contrário, hoje algumas mulheres adoram ser chamadas de “cachorra.” Motoqueiros que realizam peripécias irresponsáveis como ato de coragem e exibição pelas avenidas de São Paulo ganharam o apelidado glorioso de “cachorro doido” e “Cachorrão” é sinônimo apologético de homem triunfador. Coisas da nossa cultura machista, apenas. E quando penso em machismo, nesta primeira madrugada de agosto, me vem a cabeça, não sei porque diabos, outra imagem da rua, a imagem de bolsonaro, presidenciável que eu tinha visto de relance, na televisão de um bar, num programa de entrevistas. E com a imagem deste cão doido dos infernos na cabeça, percebo que nem a companhia de Nelson Rodrigues me foi reconfortante, e percebo também que o brasileiro não evoluiu porra nenhuma nos últimos tempos.

Fecho o livro, mas ainda não consigo pegar no sono. Fui acometido por uma tristeza profunda, que seguiu para o medo de não sei o quê. Da noite de lua cheia, talvez. Do bolsonaro presidente? Do saco plástico na cabeça? Da covardia de não ter livrado o cachorro de rua daquele sofrimento. Culpa. Teria ele morrido asfixiado num saco de lixo? Logo em agosto, no mês do cachorro louco.

A falta de sono e o computador ligado para checar os e-mails que não chegaram, aliado ainda a curiosidade, me fizeram pesquisar no Google a origem dessa acepção de “mês do cachorro louco”. E descobri que agosto vem do latim Augustus, é o oitavo mês do calendário gregoriano. É assim chamado por decreto em honra do imperador César Augusto. Ele mudou o nome do mês – que antes se chamava sextil – simplesmente porque não queria ficar atrás de Júlio César, em honra de quem foi batizado o mês de julho. Mas se isso já não bastasse, ainda ambicionou que o “seu” mês também tivesse 31 dias, não queria perder em nada para Júlio César. Talvez esse tenha sido um dos primeiros atos de loucura vinculados ao mês de agosto. Desde então os romanos começaram a espalhar histórias de medo, azar e outras loucuras cometidas durante esse mês. Li ainda que o tal Júlio César mandou enforcar dois dos seus senadores – os que não concordaram com ele. Que autoritário ditador este imperador! (Deixa a minha mente em paz, bolsonaro)…

Tempos depois, em Portugal, um rei determinou que as expedições que partiam à procura de novas terras deveriam sair sempre no mês de agosto, e como a maioria dos homens estavam embarcados nessas expedições – ou pelo menos os mais corajosos e honrados, que eram na verdade os grandes partidos da época, as mulheres preferiam esperar pelos que voltassem. Casar antes da viagem era correr o risco de passar uma lua-de-mel solitária, ou até ficar viúva, por isso criou-se o ditado: “Casar em agosto, traz desgosto”.

Já nos tempos de hoje, na Argentina – acreditem se quiser – algumas pessoas acreditam que não se deve lavar a cabeça durante o mês de agosto, quem o faz, está chamando a morte. Fico imaginando aqueles argentinos que gostam de conservar os cabelos compridos, como os de alguns jogadores da seleção Argentina, com aquela cabeleira suada depois de um jogo… Um mês sem lavar? Acho que nessa hora as mulheres argentinas gostariam de ser as portuguesas do século XV, só para tê-los bem longe delas.

E por falar em mulher, casamento, descubro nas curiosidades do mês que o dia da sogra também é celebrado no dia 24 de agosto. Mesmo dia de todos os Exús do Candomblé, no Brasil. Coincidência, não?

A verdade é que, além disso, muita coisa ruim aconteceu no mês de agosto, como por exemplo: As duas grandes guerras mundiais começaram em agosto, Hitler assumiu o governo da Alemanha em agosto, a construção do muro de Berlim foi iniciada em agosto, as cidades de Hiroshima e Nagazaki foram destruídas pelas bombas atômicas em agosto, Getúlio Vargas suicidou-se no dia 24 de agosto de 1954. Sem falar de outras guerras, desastres, furacões, invasões, suicídios, terremotos e epidemias, dentre elas o primeiro surto de raiva entre animais domésticos que aconteceu na Europa e depois se espalhou pelo mundo. Desde então, no mês de agosto acontece a campanha de vacinação contra raiva, onde todos os donos levam seus bichinhos e bichões para tomar a vacina. Por esse motivo agosto é chamado de mês do cachorro louco…

E quando li sobre isso, voltei a lembrar do cachorrinho da noite passada. Espero que ele tenha encontrado, pelo caminho, alguém com mais habilidade e afeição aos animais para lhe tirar daquela situação e oferecer algum carinho. Quem sabe um mendigo da estação não lhe adotará como acompanhante? Compondo assim um quadro recorrente nas ruas de São Paulo, quase um clichê; um homem puxando um carrinho de ferro-velho, acompanhado por um vira-lata, ambos com a corda no pescoço.

Fato é que nesta quase manhã de primeiro de agosto de 2018, mesmo não sendo supersticioso, resolvi acender uma vela para a sorte do cachorrinho, e outra para que todos os Exús fiquem em paz e longe de mim, inclusive minha sogra. E mesmo não acreditando em azar e coincidências, só por precaução, vou procurar um pé de coelho, um ramo de arruda – pequenininho, para ficar discretamente atrás da orelha, sem chamar a atenção, uma ferradura para pendurar atrás da porta. Também vou tentar me manter longe do pit-bull do meu vizinho (eleitor do bolsonaro, o vizinho – o pit-bull, creio que não votaria no bolsonaro, caso pudesse votar) e, principalmente, não cruzar em hipótese alguma com o gato preto da vizinha de frente. Ah, também vou acender uma vela para que o coisa-ruim não ganhe a eleição. Não é nada de mais, besteiras sem importância, afinal eu não acredito em nada disso, e só não passo embaixo de escadas para evitar acidente, pois, como diz aquele ditado espanhol: “Yo no creo en las brujas, pero que las hay, las hay”.

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Marcelo Nocelli
é escritor e editor. Formado em tecnologia eletrônica gráfica (1994). Licenciado em Letras (2010). É autor de contos e crônicas publicados em revistas e sites especializados no Brasil, Alemanha e Itália. Autor dos romances O Espúrio, 2007 (traduzido e publicado na Alemanha em 2013), O Corifeu Assassino, 2009 (traduzido e publicado na Itália em 2014), ambos pela LCTE Editora, e Reminiscências, 2013, (editora Reformatório). Em 2014 organizou os livros Grenzenlos, antologia de contos que reuniu 25 autores brasileiros – até então inéditos fora do Brasil), publicado na Alemanha pela Editora Verlag e Crônicas da UBE (Editora Pasavento), antologia de crônicas com 29 autores brasileiros filiados a UBE – União Brasileira de Escritores, da qual Marcelo ocupou o cargo de Secretário Geral durante a gestão 2013/2014. Em 2015 fez parte do júri do ProAC, nas categorias “Autores inéditos” e “Coleções de editoras”.