Estiquei as pernas, me ajeitei no sofá, ajustei o som da TV, liguei o videogame e comecei a matança.
Meus dedos apertavam os botões do joystick com mais força do que o usual: hoje tinha sido um dia daqueles. A criatura tinha aparecido de repente, no caminho até as ruínas de um cemitério élfico abandonado que o personagem controlado por mim pretendia explorar. O bichão, emanando uma atmosfera podre, corpo morto-vivo venenoso e caindo aos pedaços, veio de algum lugar do bosque à minha esquerda, me derrubando do cavalo. A luta, porém, se encerrou com rapidez e restavam no chão apenas os espólios da criatura. Foram guardados no inventário pedaços do seu cérebro, um dedo arrancado, dentes e a língua. Todos os ingredientes poderiam ser úteis para alguma poção mágica futura.
Pausa.
Curei meus ferimentos, organizei minhas armas, ervas e poções. Depois, salvei a partida, só por precaução. Conferi o mapa: um marcador amarelo indicava a proximidade do seu objetivo. Deixei o cavalo de lado e entrei, espada empunhada, na floresta. Um vento agitava os cabelos do meu personagem. A luz acentuava os diferentes e coloridos tons da paisagem. Mexendo no joystick, girei a câmera ao redor de mim, admirado com a beleza dos gráficos daquele jogo. A segunda-feira se apagava? Estava lá, lá atrás?
Movimento. Vozes? Reconheci um grupo de bandidos, que vasculhava o cemitério. Uma outra missão oferecia uma baita recompensa pela cabeça deles. Felino, meu personagem se esgueirou com habilidade e enfiou a lâmina de sua adaga repetidas vezes nas entranhas de um deles. Sons secos, sangue esguichando, som da morte. Quase dei um pulo no sofá e gritei – tinha acertado, com meu arco, três bandidescas cabeças em sequência. A terceira cabeça chegou a explodir com o impacto da sua flecha flamejante. O som foi grotesco, como o de um jarro de suco de morango explodindo dentro de um micro-ondas.
Agora vai!
Mas então a luz apagou no bairro todo.
Minhas mãos apertaram o joystick. Estive a ponto de jogá-lo no chão, frustrado com aquele dia de merda. Mas um brinquedinho desses custa caro, não é?
No escuro, o mundo perigoso do jogo ainda pulsava, competindo com as preocupações do dia, problemas em sala de aula, prazos de entrega, grana.
Esfreguei meu rosto:
– E agora?
Para completar, as redes sociais no meu celular me mostravam a cara feia de Bolsonaro por todo lado. Senti raiva. Preocupação. As fotos do candidato pareciam as de um buldogue. Com ressaca. Da janela, percebi uma estranha luminosidade. Fui conferir e vi que na esquina do meu apartamento uma pessoa fazia malabarismos com fogo. Há alguns dias uma trupe de uruguaios e argentinos estava por ali praticando malabares e pedindo uns trocados. Embora o semáforo estivesse desativado, um dos integrantes do grupo continuava a praticar. As chamas formavam semicírculos, que depois ziguezagueavam rasgões luminosos. A luz pouco revelava da silhueta dos outros cinco e não seria um erro chamá-los de espectros, ou fantasmas. O malabarista parecia mais e menos humano na noite. Aos meus olhos, tinha adquirido uma estatura maior do que a normal.
Círculos de fogo, círculos imperfeitos, cheios de arestas – ciclopes. No canto IX da Odisseia, o protagonista e narrador do poema, Odisseu, entra com seus companheiros na gruta do ciclope Polifemo movido pela vã ideia de que serão bem recebidos pelo monstro. Mas não há como argumentar, ou dialogar com Polifemo. Não é possível jogar normalmente com os ciclopes, convidá-los à racionalidade, fazê-los entender o nosso ponto. A própria força deles é o grotesco. Eles vivem do ódio e da raiva; dessa maneira se arrastam na lama, alimentando-se uns dos outros num ciclo sem fim; morte, loucura e ódio são sua razão de ser e sua missão. Assim, Polifemo não respeita o dever da hospitalidade e prende os visitantes na gruta com o objetivo de a todos devorar. Os primeiros quitutes, dois companheiros de Odisseu, foram mortos assim que o cativeiro se estabeleceu. Polifemo meteu suas cabeças no chão da gruta até que os miolos se espalhassem por todo lado. Odisseu nos diz, horrorizado, que o ciclope “nada deixou, mas comeu as vísceras, a carne, os ossos e o tutano”.
A vingança, porém, um dia chega. O ciclo do caos acaba voltando aos seus pais. Odisseu é sortudo, porque quando o caos volta para cobrar as suas dívidas dos ciclopes, geralmente varre a todos consigo. Odisseu, porém, consegue fugir ileso da gruta e ainda fura, com um tronco aquecido de uma oliveira, o único olho do monstro. Tempos depois, descobrimos o que aconteceu com Polifemo em outro poema antigo. O protagonista agora é Eneias, antepassado da futura Roma, um dos poucos troianos que sobrevivem ao genocídio causado pelos gregos na guerra de Troia. Fugindo do lar devastado e em busca de um novo lar, a nau de refugiados troianos passa perto de onde Polifemo vive. E lá está o monstro decadente, arrastando consigo sua herança, o tristíssimo peso da destruição. Virgílio não diz que Polifemo está mancando, mas é assim que eu o vejo: arrastando uma das pernas, seu gigantesco corpo emoldurado pelo cair da tarde e pelo vulcão fumegante da ilha onde se exila. Virgílio também não diz o quanto seu corpo treme, mas assim eu também o enxergo: corcunda na quase-noite. Do seu olho vazado sai uma secreção remelenta e, nos diz o poema, “Rangem-lhes os dentes, de dor”. Algo pulsa no meu estômago, algo com vários olhos e espinhos. Se a luz voltar, por enquanto terei que fechar os olhos. Nessa hora o ciclope da esquina da minha casa joga para cima a sua tocha, que dá voltas sobre si mesma. Farpas de fogo ameaçam incendiar a noite, a cidade.
::
Cristhiano Aguiar é escritor e professor de Letras da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Em 2018 lançou “Na outra margem, o Leviatã” (Lote 42)