DEPOIS DA QUARTA – KELVIS SANTIAGO

Não me olha assim desse jeito que de besta só tenho a cara. Quem vê por fora certamente diz “ó lá, lá vai o trouxa, sempre engomadinho e pronto pra dizer sim pra tudo”. As pessoas falam, eu tô ligado, mas como já falei, eu de besta só tenho a cara. Vou seguindo cada dia dentro das expectativas: cumpro com meus compromissos, honro com minha palavra, pago tudo o que devo, e a resposta é isso? É esse o pagamento que ganho, ser feito de otário? Será que ser bonzinho demais faz de alguém um sujeito sem vísceras? Eles acham que pisando assim eu não noto, não sinto, não vou reagir?

Outro dia quando cheguei em casa aquele imbecil falou comigo como se eu fosse um robô assistente pessoal. Não deu boa noite, não sorriu ao me ver, foi logo reclamar da zona que estava o apartamento e que não tinha nada pra comer. Calei, respirei fundo, dei um jeito na bagunça achando que ia resolver a bagunça que estava a minha vida: trabalhar de segunda a sábado, gastar tudo que ganho pagando conta, sempre preocupado em ter tudo nos eixos pra chegar em casa e não ter um beijo sequer? Não ter o mínimo de afeto?

Dois meses atrás ele falava que faria tudo por mim, que não saberia viver sem mim, que eu trouxe significado pra vida dele e agora a história já é outra. Cada dia era uma novidade. Por acaso já disse que ele me convenceu de todas as formas da vantagem que seria termos um carro? Até tentei desviar do assunto, argumentar, explicar a importância de guardar grana, mas não teve jeito. Carro do ano, sedan, nada dessas bagatelas de carro popular de segunda mão não. Poderia muito bem dizer que a gente tinha tudo do bom e do melhor. Onde quer que a gente chegasse era estouro: olha lá, tão de carrão hein? Só quem pode! Não vou mentir que era bom pro ego. Ser pobre de espírito é se contentar com muito pouco mesmo. Sabia que ia me matar de trabalhar pra pagar cada centavo, mas sabia que ele estava feliz e disso não abria mão.

Apesar de pagar a porra do carro praticamente só era ele quem dirigia pra cima e pra baixo. Sempre reclamando que minha direção era ruim e que melhor seria não correr o risco de bater em outros carros ou arranhar a lataria. Sim, porque o prejuízo seria grande e ele não estava disposto a ter “mais gastos”. Sim, porque agora era ele o senhor entendedor das finanças. O pior era eu concordar com essa merda toda e deixar ele me fazer de tapete de entrada do apartamento.

Agora que ele estava sem trabalho (já tinha uns três meses na verdade) podia e fazia questão de ser, como ele mesmo dizia, o meu choffeur particular e me deixar e buscar no trabalho todos os dias. Me falou que estava até pensando em fazer corrida particular pra ganhar uma grana extra enquanto não saía o resultado da entrevista que tinha feito na semana passada. E eu sempre lá, disposto a dar uma força e uma palavra amiga. Sempre querendo o melhor pra ele e torcendo pelo seu sucesso. Agora como que eu ia dizer que achava estranho que toda semana era mais uma entrevista sem um resultado? Afinal ele era formado em direito e eu sabia bem que o emprego na área tava foda. Assim dizia ele. Não ia jogar nada na cara dele ou mesmo permitir que ele se sentisse um fardo pra mim. Só que tudo tem limite. Infelizmente o meu não tinha se esgotado quando eu chegava em casa de ônibus irritado por ele não ter ido me buscar no trabalho e me deparava com ele deitado no sofá alegando explodir de dor de cabeça. Da outra vez era o estômago e acho até que uma vez a desculpa foi que precisava fazer mais corridas já que era assim que ele ajudava a manter as contas da casa.

Eu aguentei muita coisa calado, ah, se aguentei. Se fizessem a premiação do trouxa do ano eu tinha levado o primeiro, segundo e terceiro lugares. Até dos meus amigos e família me afastei para satisfazer os caprichos dele. Me vi obrigado a ir àquelas reuniões de empresas de cosmético só pra não perder “a chance única de mudar de vida e ganhar dinheiro sem precisar fazer muito”. Quanta merda, meu amigo, quanta merda. E ai de quem acusasse aquele esquema escroto de pirâmide financeira. Às vezes me pergunto se teria aguentado mais tempo se não tivesse descoberto aquelas malditas mensagens no telefone dele.

Veja bem, não sou e nunca fui do tipo controlador, sabe? Não faz o meu perfil. Sempre debochei da cara dos idiotas inseguros que não sabiam se controlar e mexiam nas coisas do companheiro. Jamais me sujeitaria a isso! Mas quem diz as coisas paga pela língua. E eu tava ali, tão de boa no sofá, esperando-o sair do banho pra ver se me fazia um pouco de companhia, e a droga do celular do meu lado, sem parar de vibrar. Resisti ao máximo que pude, não queria me colocar naquela situação, mas era mais forte do que eu. Até a droga da senha eu sabia de cor, então tinha a certeza que ele não tinha o que esconder. Foi nessa que quebrei a cara. Hoje queria ter visto num telão de cinema com imagem panorâmica a cara patética que devo ter feito ao ver aquelas mensagens tão na minha cara. Elas pareciam zombar de mim, rir de mim por todo o papel de idiota que eu estava fazendo. Não era uma ou duas, eram várias mensagens, várias vozes que destroçavam todo o meu orgulho enquanto homem. Não conseguia acreditar que era possível me sentir tão sujo e machucado daquela forma. Como poderia, dali em diante, olhar na cara de uma pessoa capaz de se deitar com tantos outros e ao mesmo tempo me fazer acreditar que era único? Que nosso leito era sagrado? O tempo todo estive no meio da imundície dos porcos sem saber que era companheiro de um.

Hoje estou curtindo meus bons drinks, deitado numa cadeira de praia ao som de Amy Winehouse e apreciando o entardecer. O mar aqui é verde e a água bem mais quente que a daquela cidade que espero não mais pisar os pés. Aqui a vida parece ter outra cor e até mesmo as lembranças de um passado recente mais parecem roteiro de filme ruim. Você certamente estranha toda essa reviravolta e deve se perguntar: e seu querido e amado companheiro, por onde anda? Devo confessar que não sei o que é feito dele e tenho raiva de quem sabe. Raiva não, vai, deve ser desprezo. Tive mil possibilidades de dar o troco: traí-lo, fazer um escândalo, ir atrás de cada um dos amantes que se envolveu com ele, ameaçar acabar com a minha amada e preciosa vida, mas não. A partir do momento que descobri toda aquela sujeira, percebi que eu havia me tornado tudo aquilo que sempre desprezei. Não podia aguentar mais um segundo daquilo. Eu não aceitaria. Simplesmente agi como se nada tivesse acontecido. Segurei o choro, fui pra frente do espelho me olhar nos olhos e dizer pra mim mesmo: hoje não vou derramar uma lágrima sequer. Voltei e comecei a pôr em ação todo o meu plano, a começar por fingir que nada havia mudado. Precisei no máximo de uma semana e a ajuda de uma pessoa que não vem ao caso para arquitetar tudo. Seria tempo suficiente para a minha transição.

Fiz com que ligassem para aquele cretino oferecendo uma vaga num escritório a 200 km da capital. Seria para atividades somente aos finais de semana, o que daria tempo de sobra para aquela alma sebosa arranjar outros pra se divertir e ainda ter um salário razoável pra pagar os motéis. Relembrando agora, me pergunto como ele foi tão imbecil para nem mesmo se perguntar como conseguiram o currículo dele! Fiquei empolgado, falei que dava todo o apoio, dei-lhe uma boa mesada para cobrir as despesas e me despedi com um beijo afetuoso e apaixonado. Havia reservado um quarto em nome da suposta empresa para que ele pudesse descansar no dia anterior ao da entrevista. Assim até poderia conhecer os arredores e levar alguém para o quarto de hotel. Nunca se sabe. Com isso tive o prazo de 48 horas até ele descobrir que não havia vaga e 60 horas até tê-lo de volta em nosso lar. Era o tempo suficiente para tudo o que precisava fazer.

Comecei por cancelar os cartões de crédito e zerar toda a conta corrente. Entreguei a carta de demissão no trabalho, encerrei o contrato de locação do imóvel e despachei toda a mudança em um caminhão que seguiu para um lar de idosos da região metropolitana. Tenho certeza que todos aqueles móveis e eletrodomésticos vão servir muito bem a quem precisa. Dei-me ao trabalho de trocar a fechadura da porta para não correr o risco de a casa ser invadida por estranhos e fiz questão de entregar as novas cópias ao proprietário, que morava em uma cidade vizinha. Fiz metodicamente todos os agradecimentos pelos anos que convivemos e disse em meu nome e no de meu estimado companheiro que sentiríamos saudades do bairro, mas que estávamos de mudança para outro estado. Ainda sobrou algum tempo de ir ao banco informar que não teria mais condições de arcar com as despesas do carro e que como não mais conseguiria pagar as parcelas, eles poderiam acionar a justiça para a busca e apreensão do veículo, que havia sido levado sem minha autorização por um amigo. Se engoliram essa ou não, não tenho como saber. Só achei que seria importante eles fazerem algo antes que sumissem com o carro.

Tudo foi feito e orquestrado numa sincronia majestosa. Juntei todas as minhas coisas e me mandei pra cá, que lamento de antemão não poder informar onde fica, para curtir essa nova fase da minha vida. Por sorte consegui guardar uma boa quantia que me permitirá nos próximos meses ter uma vida mais sossegada. Tenho tomado sol, mergulhado no mar, outro dia até aprender a pescar aprendi, acredita? Comecei a correr na praia, tenho feito exercícios pela manhã e até acho que o carinha da pousada ao lado tem me olhado de uma forma curiosa. Vai saber. Tenho plena consciência que essa vida não vai durar pra sempre, mas pelo menos sinto que estou ficando mais forte para um novo começo. Ao longo dessas três semanas que marcaram minha partida, vez por outra me pego sorrindo ao imaginar toda a coragem que tive de seguir em frente e não me arrependo por um segundo de cada coisa que fiz. A única coisa que lamento é não ser uma mosquinha pra acompanhar cada cara de surpresa que o falecido deve ter feito. Às vezes, mesmo sabendo não ser difícil ele ter arranjado outro besta que o sustente, gosto de pensar que ao menos algumas noites mal dormidas ele passou naquele carro até que a polícia o encontrou e apreendeu o veículo. Às vezes, mesmo sabendo que ele merecia tudo isso e ainda mais, me pego desejando que eu pudesse ter algum tipo de empatia por aquela pobre alma. Confesso que esse tipo de frescura logo passa. Agora também tem vezes, e essas bem mais frequentes que as demais, que depois da quarta caipirinha meu estado de espírito fica tão sublime que tudo que eu mais queria era viver essa vida por mais uns mil anos.

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Kelvis Santiago (@kelvissn) é cearense e apaixonado por histórias. Não dispensa um bom filme e nem uma boa cerveja. Cabra da peste e da poesia. Formado em Letras e servidor da Universidade Federal do Ceará.