Quando pensamos na clássica franquia pós-apocalíptica Mad Max, por sinal a preferida deste que vos fala, talvez dois conceitos base nos venham à mente, caos e loucura, curiosamente conceitos referenciados logo no início do primeiro filme de 1979, no qual duas placas de um cruzamento têm escrito as palavras “Anarchie” e em outra “Bedlam” – referência ao Bethlem Royal Hospital, hospício inglês mais antigo do mundo.
Um dos pontos fortes em toda a franquia é a capacidade de trazer tantos temas condensados em sua forma. Tanto na estética quanto nas atuações de poucas falas, ele é poderoso em sua estrutura narrativa e em como passar sua mensagem e contar sua história de forma coesa, com maestria entre a ação estilizada que se assemelha ao clássico de Stanley Kubrick “A Clockwork Orange” (1971) e as frenéticas perseguições de carros.
A premissa narra a busca por vingança de um ex-policial, Max Rockatansky (Mel Gibson), contra um grupo de motoqueiros sádicos. Como plano de fundo temos um mundo onde todas as instituições estão desmoronando pouco a pouco, a Man Force Patrol, força policial de contenção da barbárie instaurada que se assemelha muito aos mesmos homens marginalizados que eles caçam, tanto esteticamente como na paixão pela violência e no prazer no exercício do poder.
Em determinado momento da película de 1979, Max demonstra vontade de abandonar a força policial. O interessante nesse diálogo é o argumento por ele utilizado, enquanto o seu superior, Capitão Fifi Macaffee (Roger Ward), declama um discurso meramente retórico as pessoas não acreditam mais em heróis, vamos devolvê-los a elas, Max responde estar com medo: estou começando a gostar do circo lá fora. Se eu continuar na estrada ficarei como eles, louco. Só que meu distintivo de bronze me faz um dos mocinhos.
O braço do Estado que protege a sociedade civil contém o monopólio da força, mas quando as instituições se esfacelam, a linha entre a violência legal e a marginal fica cada vez mais tênue. Nesse mundo criado por George Miller, é exatamente esse estado de caos que domina e leva a um comportamento cada vez mais violento, conforme a crise econômica chega ao seu apogeu. Esse medo generalizado é mostrado logo no início com o vilão, Nightrider (Vincent Gil), quando antes de sua morte, logo na primeira cena, ele diz a seguinte frase enquanto chora enlouquecido: É o fim. Não vai sobrar nada. Acabou tudo.
Se lido de forma imediatista, talvez pode-se interpretar que Nightrider temeu a superioridade do protagonista que estava o perseguindo, percebendo que esse seria seu fim. Porém, tenho uma interpretação diferente, justamente por aquilo que não foi dito. Podemos inferir que há ainda poucos polos com organização social, o Estado parece se resumir a polícia, mesmo assim percebemos que é ineficaz, justamente pelo medo que as pessoas comuns possuem das gangues e desacreditam das instituições. Esse cenário evoca a influência dos filmes Westerns, presentes nos duelos de carro, no comportamento e no figurino do filme.
Nightrider e sua gangue que já se encontram em estado de histeria, andam pela estrada, instaurando o caos e saqueando os poucos lugares onde existe alguma manifestação de equilíbrio, em que pessoas que renegam a ultra-violência se refugiam da selvageria. Eles consideram esses civis fracos e não merecedores da estrada e daquele novo mundo, a “Wasteland”. Na minha interpretação, Nightrider é o espelho mágico de Max, ele enlouqueceu justamente por em seu íntimo temer o rumo ao caos iminente, ele percebeu qual seria a nova ordem humana, o estado de natureza de Thomas Hobbes.
Para Hobbes, no estado de natureza, os homens podem todas as coisas, utilizando de todos os meios disponíveis para alcançar e saciar tais impulsos, pois O homem é o lobo do próprio homem. Para o autor, o conflito e a violência são a regra do comportamento humano, é possível ver sentido nisso se olharmos para Wall Street. Nessa configuração caótica para se ter algum nível de respeito necessita um feito notável de demonstração de força para haver a vanglória (TESTEMUNHEM!). Por meio da reputação era possível se instaurar o poder pela força, então para nivelar essa autoridade e haver ordem, existe uma sujeição voluntária, não algo de bom grado, mas um acordo de tolerância que visa renunciar o poder pela força, no qual o monopólio da força é pertencente a um subterfúgio, o imponente Leviatã, o Estado.
Podemos observar o aprofundamento dessas questões e o anexo de outras tangenciais em Fury Road, o mais recente filme da franquia, em que o déspota Immortan Joe é interpretado por Hugh Keays-Byrne, ator que encarnou Toecutter, o motociclista insano antagonista do filme de 1979. Esse líder é adorado como um sacerdote e utiliza de uma retórica fundamentalista em paralelo com o recrutamento de jovens para grupos terroristas, operando igualmente a fé e a carência dos chamados War Boys, lhes prometendo a glória para que eles se sacrifiquem por ele. Esse grupo recebe o título de kami-crazy -referência aos camicases, pilotos japoneses da segunda guerra mundial encarregados de missões suicidas -, mostrando a coisificação de humanos transformados em instrumentos para interesses tirânicos.
Interessante pensar no paralelo das relações entre ordem e caos, sanidade e loucura, pois conforme o mundo vai se descaracterizando as pessoas são deturpadas junto a ele. Pessoas comuns como nosso herói das estradas são esmagadas, como dito no monólogo de abertura do segundo filme The Road Warrior de 1982.
No primeiro longa, temos um trabalho muito efetivo de desenvolvimento de personagem. Após perder sua família, Max busca refúgio em casa, onde se depara com uma máscara de monstro que utilizava outrora para brincar com sua família. Agora alienado de sua humanidade, lembranças felizes se transformam em combustível para sua desolação interior.
Max está entregue aos seus demônios, transformando-se naquilo em que ele combatia, naquele monstro que ele negava existir e que agora o possui, tornando-se um anti-herói. O protagonista que é levado apenas pelo instinto de autopreservação, se questiona sobre sair dessa condição quando cogita ajudar na reorganização de algum grupo, depois de ver a possibilidade real de articulação com a cidade de Bartertown, quando se reconhece na Tia Entity (Tina Turner), em Mad Max Beyond Thunderdome (1985). No entanto, esse terceiro momento é outra etapa de sua jornada e assunto para outro texto.
Retornando ao primeiro exemplar da franquia, ainda bem longe do mainstream, sua primeira transgressão foi roubar o último interceptador, o Ford Falcon V8 preto, que é praticamente o Batmóvel da franquia. Então Mel Gibson dá ao personagem uma personalidade endurecida pelo sofrimento, frio e transtornado, com um olhar vidrado e uma raiva fidedigna enquanto ele pune severamente seus algozes, demonstrando, assim, que ele está entregue a mesma loucura e selvageria dos mesmos. Outra rima visual é a última cena de Max, após a efetuação de sua vingança, ele aparece transtornado, no mesmo ângulo que Nightrider é mostrado na primeira cena em seu surto final.
Mostrar a estrada enquanto metáfora para a loucura é um recurso também utilizado por David Lynch em filmes como “Blue Velvet” (1987) e “Lost Highway” (1997). O diretor estadunidense, por vezes, utiliza da estrada como metáfora para o afastamento da razão, o caminho ao limiar da insanidade do qual não existe mais retorno.
O contexto em que o filme nasceu também faz total sentido com seu senso de deterioração e decadência. O mundo vinha de uma sequência de conflitos que figuravam três das maiores crises do petróleo até então: em 1967 em detrimento da chamada “Guerra dos seis dias”; em 1973 com a chamada guerra de Yom Kippur; e seu ápice em 1979, ano de lançamento do primeiro longa da franquia com a Revolução Islâmica no Irã, país que é um dos principais exportadores de petróleo do mundo.
Toda essa instabilidade econômica, acompanhada pelo medo do holocausto nuclear em plena guerra fria, foi retratada nos filmes “Planet Of the Apes” (1968) e “The Omega Man” (1971), ambos estrelados por Charlton Heston. O constante medo com o aumento da violência urbana foi tema do cultuado “Escape From New York” (1981) de John Carpenter, que se passa em futuros onde a desesperança, a solidão, a violência e a loucura são cada vez mais presentes.
Seu legado foi fortemente presente na Austrália, país de origem de Mad Max, com a expansão do Ozploitation, subgênero de baixo orçamento em filmes de ação, horror e comédia, movimento cinematográfico que teve origem em 1971 após a implementação da classificação R para temas adultos e de violência. Não foi necessário muito dinheiro para passar a atmosfera de caos filmado no deserto australiano, o calor constante e a estética de sucata são elementos que imprimiram o que havia afligido naquele mundo.
Mad Max é um clássico absoluto da ficção científica, sendo revolucionário em diversos níveis. Ainda figura como um dos filmes de maior retorno financeiro da história do cinema e marca o espirito de uma época. Ele nos mostra como a loucura, a frustração e a insegurança nos faz questionar qual é o limite para homens civilizados, em momentos de crise e de pressão, não ajam de forma brutal e insana. Qual é a verdadeira natureza humana? O que aconteceria se os loucos se tornassem maioria?
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Rômulo Ribeiro de Freitas Junior (@romuloribfreitas) tem 25 anos, é geógrafo em formação. Seus maiores interesses encontram-se entre Filosofia, Geografia, Literatura e Cinema, autor de ficção de maior influência é Alan Moore, tendo como principal referência cinematográfica Stanley Kubrick, é apaixonado por Breaking Bad.