A lua estava em Câncer quando tudo começou. Hey, você me perdoa? A noite estava fria quando tudo se desenrolava. Você quer vinho, Serafim? Se você for embora me avisa, podemos ir juntos. Conversar pelo caminho. Amo você. E aquele samba toca, um perdido no meio do povo. Me dá um pega desse beck. Não há mais que se temer as influências do jazz. Embaixo do viaduto é onde o encontro acontecia toda terça-feira. Começa assim: todos sóbrios, só no pezinho. A bebida vai tomando os corpos, que se tomam uns aos outros. A divisão permanece nítida. Os que dançam, bebem e fumam e depois vão para seus apartamentos em volta da roda de samba. Os que moram por ali, nos seus cantos habituais, parados, tremendo de frio. Todos entendem a crueldade do sistema, por isso mesmo sambam em dia de semana. Os que dormem ali, no entanto, é melhor que fiquem encolhidos. Sabe como é? A gente acha essa situação uma bosta, mas eles fedem, né? Roncou, roncou, roncou de raiva a cuíca, roncou de fome… Quer um gole de cerveja? Risos. Essa música é demais. Tá fazendo quantas cadeiras nesse semestre? Só três, tá meio puxado por causa do estágio. Fala mais alto! O estágio! Ah. Alguém mandou, mandou parar a cuíca, é coisa dos homem. Amo você. Me dá um abraço. Bate lá em casa. Não esquece de mim. Pensei que responderia a carta que deixei na sua porta. 2018. Carta. Ambos riem. Tentei responder, procurei seu número. Também devo estar bloqueado em todos os meios virtuais. Sim, bloqueei também. Senti muita raiva. Vamos conversar amanhã, então. Sinto muita falta da companhia, do violão, da Brahma. Certo, vou. Tô meio tonto. Daqui a pouco vou embora. Vamos? Vou à Cidade Baixa ainda com o pessoal aqui. Tudo bem. Um longo abraço, com sentimento. Culpa. Remorso. Traição. Saudade. Paixão.
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Anderson. Presente. Andressa. Presente. Bianca. Presente. Bruno. Presente. Bom dia, pessoal! A aula de hoje é sobre o Estado Novo. Abram os seus livros na página 42. Deem uma olhada na Introdução. Encontraram? É o primeiro texto, no retângulo em azul. Leiam, por favor, e respondam às questões seguintes. Todas? Sim, da 01 até a 12. Depois tragam aqui para eu corrigir.
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Oi. Nossa, eu tô muito cansado. Cheguei há pouco do trabalho. Eu também. Tô cheio de coisas lá na bolsa. Então, me conta, faz tempo que a gente não se fala, mudou de curso? Sim. Finalmente fazendo o que quero, Letras. Tá gostando? Tô me adaptando ainda. Acho que vou reprovar em Morfologia. Mas e aí? Ontem, quando a gente se viu, eu tava muito louco. Risos. Eu também! Fiquei muito feliz em ver você. Sim, eu senti mesmo a sua falta, pensei que estivesse com raiva de mim. É, faz tempo que queria falar sobre o que aconteceu. Entender o motivo de tudo aquilo. Me deu uma sensação terrível de desprezo. Talvez o de mais horrível que se pode sentir. Não era nada disso. Depois pensei que estivesse com raiva de mim. Nunca. Eu só queria entender, de coração. Eu ficava com receio de cruzar com você pelo prédio. Silêncio toma conta do apartamento. Serafim chora um choro, com víscera. Lúcio, calado, observa. Não sei o que dizer. Engasgado com as lágrimas, o outro nada responde. E passados alguns minutos: Posso fumar aqui? Pode. Eu contei tudo à Laura porque queria me vingar, eu estava sentindo muito ódio de você. Agora eu entendo. Só que não era nada disso. Eu não andava muito bem. Continuo não estando. Quer um gole de cerveja? Risos. Não. O senhor anda bebendo sozinho, hein? Aprendi com você. Então, preciso ir. Queria saber o motivo de você ter inventado tudo aquilo. Também senti muito a sua falta, mas preciso de um tempo. Sim, total compreendo. Tem a Laura nessa história, que é a pessoa que eu mais amo, que é mais importante para mim. Sim, também consigo me colocar no lugar dela. Pois é. Bom, vou lá. A gente se vê, cara. E aquele abraço demorado, com direito a excitação.
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“Queria saber o motivo de você ter inventado tudo aquilo”. “Queria saber o motivo de você ter inventado”. “Inventado tudo aquilo”. “Inventado”. “Inventado”.
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Depois que você saiu lá de casa ontem, eu fiquei pensando em um negócio. Eu realmente preciso saber o que exatamente eu inventei. Agora eu não posso, cara. Tô ocupado. Serafim, eu preciso saber. Não consegui parar de pensar nessa palavra, me dei conta depois. O que eu inventei? Cara, não se faz. Eu gravei tudo. Eu sei com quem eu tô lidando. Oi? O que eu inventei, exatamente? O que foi que eu disse para a Laura que não aconteceu? Eu errei em ter contado, traí a confiança, mas nada do que eu disse foi mentira. Cara, gravei a nossa conversa de ontem. Eu tenho aqui! Mais de 30 minutos de conversa. Eu não acredito que você disse todas aquelas coisas se gravando? Aquele choro? Aquilo tudo era uma cena? Cara, aos gritos, eu sei com quem eu tô lidando. Você não sabe, Serafim. Você não me conhece nada. Sai do meu apartamento! O quê? Vai embora, e se dê o trabalho de editar muito bem essa gravação. Serafim, você realmente não me conhece. Quando eu procurei você para pedir desculpas, era porque eu senti a sua falta. Cara, a única pessoa que me importa é a Laura. Você é um canalha! Se gravar chorando daquela maneira.
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Oi, vamos ao samba? Preciso sair! Você não vai acreditar. Lembra que encontrei o Serafim terça-feira passada? Sim, e aí? Pensei que estivesse tudo bem entre a gente, conversamos durante um tempão. Ele ficou dizendo que eu havia inventado o que contei para a Laura, de que a gente tava saindo. Não creio. Sim, na hora, não me liguei. Nossa! Fui tentar conversar com ele de novo, ele mudou completamente. Foi tudo encenação. E a Laura? Não sei. Ela acredita nele apenas. Talvez se mereçam. Será? Ela é muito nova, tá apaixonada. Quem sabe um dia se dê conta. Sim. Não tenho dúvidas de que ela vai acabar percebendo quem é, na realidade, o Serafim.
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Sexta-feira era o dia do encontro. Laura e Serafim. Amor, que saudade. Olha só, encontrei aquele maluco semana passada. O que ele disse? Ele tá apaixonado por mim. Inventou aquilo tudo para tentar tirar você do caminho. Dá para acreditar? Coitado. Sim, sinto pena dele, na real. Como foi que aconteceu? Ele bateu aqui, ficou insistindo em ter uma conversa. Tentei explicar que não tem nada a ver, mas ele ficou fantasiando. Amo você, Laura.
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Daniel Roessler (e-mail) é professor de Língua Portuguesa e estudante de Ciências Sociais.