SIMONE – CHARLES BERNDT

Simone ia todos os dias pela manhã à padaria, comprar sonho. Amava sonho. De tudo que poderia comprar na padaria, era essa sempre a sua escolha, esse bolinho gorduroso, recheado com doce de leite, que chamamos de sonho. Talvez amasse tanto aquele pãozinho porque o sonho era tudo o que tinha, o que a mantinha de pé e lhe dava forças para levantar da cama. Todos os dias ela caminhava então com tranquilidade por Canasvieiras, olhando as lojas, dando carinho em cachorros de rua e sendo olhada, de soslaio, pelas pessoas que passavam por ela. Todos os dias ela ouvia os seguintes comentários: ”Isso é um homem ou mulher?”, ”É um traveco?”, ”Por que ele se veste assim?”, ”Olha, lá vem ela”, ”Que pouca vergonha”, ”Esses veados estão por toda parte”. Todos os dias Simone ignorava todos esses olhares, todas essas palavras e sorria para o dono da padaria, o simpático Miguel, único a não tratá-la de forma agressiva ou com repugnância.

– Bom dia, Miguel, eu quero dois sonhos, por favor.
– Bom dia, moça. Claro, o de sempre!  – Simone sorria quando ele a chamava de moça.

Nascida no interior de Santa Catarina, Simone se mudara para Florianópolis há alguns anos, acreditando que a vida seria mais fácil. Enganara-se. Também ali, em plena capital, sentia-se julgada, ignorada, excluída, ridicularizada. O lado bom é que ao menos agora tinha sua casa própria, um puxadinho que conseguira comprar com muito custo, depois de receber uma pequena herança de sua falecida avó, a única que a aceitava e a amava. Simone gostava do seu nome, gostava de dizer Simone, sempre pensava em Simone de Beauvoir, uma outra Simone, bastante importante, que também desafiara o seu tempo, que também falou onde não era chamada.

Simone ganhava a vida como a maioria de suas amigas e companheiras: prostituía-se. Mas enganava-se quem achava que ela tinha escolhido ser puta. Não. Ela tinha, sim, tentando estudar, mas não a deixaram, todos os dias, quando frequentava a escola, humilhavam-na. Mais tarde, quando finalmente teve condições de assumir-se mulher, de externalizar aquilo que sempre fora dentro de si, viu-se ainda mais excluída. Não conseguira emprego de jeito algum, mesmo sendo uma ótima cabeleireira e manicura. Então, para poder comer, para poder se vestir, pagar suas contas e não deixar de comprar sonhos na padaria do Miguel, todas as noites ela saía com seus clientes, muitos deles homens casados, com filhos, que na clandestinidade gostavam de dormir com travestis, com transsexuais.

*

Era uma noite incomum aquela, era inverno, mas não fazia frio. Simone havia marcado com um cliente que não aparecera, sem avisar o motivo. Estava arrumada, com seu melhor salto, com seu melhor vestido, decidiu então sair um pouco, caminhar, fumar um cigarro perto do mar. E assim fez. O mar de Canas estava calmo, sem uma única onda, parecia um lençol negro esticado. A lua, crescente, brilhava amena e discreta no céu.

Simone sentou-se em um banco, acendeu o cigarro e começou a pensar na vida. Teria ido mais longe, mergulhado mais fundo em suas lembranças e em seus pensamentos, se não tivesse sido atrapalhada por alguns gritos, gritos masculinos que vinham de algum lugar próximo. Ela se levantou, rápida como uma gata, olhou em volta, viu então, a uns cinquenta metros longe de si, dois homens, um deles no chão e o outro de pé, gritando muito alto. Sem pensar, ela se aproximou e, para sua surpresa, percebeu que conhecia um daqueles sujeitos, era o Miguel, o padeiro que a atendia todos os dias.

 – Fica longe daqui, traveco! É papo de homem, cai fora!  – gritou o sujeito que estava de pé, apontando uma faca para Miguel.

Simone ficou parada e olhou para Miguel, que fizera sinal para ela se afastar, se proteger. Contudo, mal sabia o assaltante que a nossa Simone tinha feito aulas de karatê e taekwondo. Sem que ele pudesse se dar conta, recebeu dois golpes e ficou imobilizado no chão, sem a faca que o tornava corajoso. Humilhado e machucado, o assaltante fugiu, mas gritou, de longe: ”vou matar vocês, veados, filhos da puta!”.

– Meu deus, moça. Você se arriscou, poderia ter se machucado, aquele sujeito é um louco!
– Ele se deu mal, encontrou alguém maior do que ele – disse Simone arrumando os cabelos e ajudando Miguel a se levantar.
– Como posso te agradecer?
– Não precisa, Miguel. Quer dizer, me dá um sonho de graça amanhã – brincou Simone.
– Sonho… Que nada! Vamos tomar algo, uma cerveja, eu moro aqui perto. Topa?

Simone pensou durante alguns segundos e respondeu, receosa:

– Tem certeza?
– Claro… Vamos lá. Por favor.
– Está bem.

Caminhando pela calçada e olhando o mar, Simone recomeçou a conversa:

– Você o conhecia?
– O assaltante? Ah… Ele já roubou a padaria umas duas vezes, mas não tive como provar. É um cara complicado, viciado em drogas, queria que eu lhe desse dinheiro hoje, mas eu não tinha, deixei tudo na padaria, por precaução.
– Você precisa se cuidar, Miguel. Fazer umas aulas de luta livre, karatê, foi assim que aprendi aqueles golpes.
– É…. Mas para quê aulas se tenho uma amiga como você? –  disse o padeiro sorrindo, caminhando com as mãos nos bolsos.

Naquela noite, Simone e Miguel ficaram conversando e bebendo cerveja durante umas duas horas. Como sempre, o simpático padeiro sempre tratara Simone com muito respeito e delicadeza. Ela pôde, então, conhecer um pouco mais a seu respeito, soube que ele também era do interior, que mudara para Floripa com o sonho de ter um negócio próprio e que, depois de penar muito trabalhando, conseguiu juntar dinheiro e abriu aquela padaria. Soube, ainda, que Miguel era o filho mais novo de uma família extensa e pobre e que, como ela, sofrera na adolescência por ser diferente dos outros.

 – Sempre fui muito calado, metido comigo mesmo, cara de menino tonto, os outros me batiam e gozavam de mim… Você sabe como é.
– Sim, eu sei bem.
– Mas e você, Simone? Você fala tão pouco de si.
– Não tem muito o que falar, é uma história triste como a história da maioria dos travestis nesse Brasil.

Miguel pareceu triste ao ouvir aquelas palavras, aproximou-se de Simone e pegou em sua mão.

 – Simone, você é uma pessoa muito boa, não se deixe abater por aquilo que dizem os outros.
– Não se preocupe, eu aprendi isso muito cedo. Obrigada!

Depois de alguns minutos, Simone levantou-se, agradeceu Miguel e disse que precisava ir embora.

 – Simone, você é sempre bem-vinda aqui. Eu sei que o pessoal do bairro é preconceituoso e te olha com raiva, com repulsa. Mas não sou como eles… Vem mais aqui, pra gente beber cerveja e falar da vida!

Simone emocionou-se com a doçura e a sinceridade de Miguel, sentiu os olhos marejarem-se de lágrimas, mas se manteve firme, não poderia chorar, sobretudo na frente de um homem, era um de seus lemas.

– Obrigada, Miguel… Voltarei. Espero não precisar ter de te salvar de novo, heim? – os dois então riram e se despediram com um apertado abraço.

*

O tempo passou, alguns meses, na verdade. Simone e Miguel tornaram-se amigos de verdade e viam-se quase todos os finais de semana. Era uma amizade diferente. Com Miguel, Simone falava de coisas que não costumava falar com outros amigos. Sem que os dois percebessem, aos poucos, então, foi surgindo uma paixão, primeiro a atração sexual e, depois, a ternura, o bem-querer, enfim, o amor. Foi numa noite chuvosa, em que Simone se arrumava para atender um de seus clientes, que Miguel bateu em sua porta sem avisar.

– Miguel, deus do céu, o que você faz aqui? Você está todo molhado… Entre, saia dessa chuva. – disse Simone abrindo a porta e vendo o padeiro encharcado.

Sem grandes rodeios, o simpático homem encarou Simone no fundo nos olhos e disse o que não conseguia mais esconder: eu te amo, moça. Sem poder acreditar, ela não compreendeu nos primeiros minutos, teve de ouvir novamente, sentir a mão de Miguel pegar na sua e, finalmente, um beijo, um beijo apaixonado. A partir daquele dia os dois tornaram-se finalmente namorados e, em mais alguns meses, noivos. Simone agora trabalhava na padaria de seu amor e era, sem dúvida, a mulher mais bela e feliz de Canasvieiras, com seus cabelos vermelhos, seu batom bordô e seus olhos verdes como folhas de parreira.

A clientela de Miguel, como era de se esperar, não reagiu bem inicialmente, o movimento da padaria diminuíra e mais pessoas começaram a falar mal de Simone, havia quem dissesse que o pobre Miguel estava enfeitiçado, inclusive. Contudo, o casal de pombinhos não parecia se importar muito com isso, viviam sua vida de forma tranquila, trabalhando e se amando, sem pensar muito no preconceito dos outros.

– Miguel, você está feliz ao meu lado?
–  Por que pergunta isso agora, minha querida? Claro que sou feliz contigo.
–  Não sei, não quero que você se sinta obrigado a nada… Sei que é difícil, as pessoas…
–  As pessoas! Esqueça as pessoas. Falam mal e fofocam de qualquer jeito. Vivamos nossa vida, ninguém paga nossos impostos. Vamos nos casar no próximo mês!

Simone não se conteve, chorou como uma criança no colo de seu homem.

–  Você é forte, Simone, meu amor. Muito mais forte que essa gente toda e até mais forte do que eu! Esqueceu que foi você quem me salvou aquela vez?

Os dois riram e se abraçaram.

***
FINAL 1

O casamento finalmente aconteceu e tudo ia bem. Simone já morava com Miguel e sentia-se, a cada dia, mais feliz. Mas não havia uma única noite que não pensasse nas outras pessoas que eram como ela, em todas aquelas e aqueles que eram excluídos e marginalizados pela sociedade, abandonados por suas famílias, escorraçados de casa, obrigados a se prostituir e muitas vezes entregues às drogas. Queria poder fazer algo, mas o quê?

– Você vai encontrar uma forma de ajudar as pessoas, minha querida, tenho certeza – dizia Miguel, sempre sorridente, sempre otimista.

Anoitecia e mais uma vez, Simone e Miguel preparavam-se para fechar a padaria. Ela fechava o caixa e ele abaixava as portas de ferro, varria o chão, limpava as mesas e deixava tudo arrumado para o outro dia. Mas antes que pudessem concluir, os dois ouviram um barulho forte na porta, um carro estacionara de modo violento e abrupto. Dois homens encapuzados desceram e invadiram a padaria, ambos armados e cheios de ódio.

– Não reajam ou matamos! – gritou um deles.

Tremendo, Simone entregou todo o dinheiro do caixa. Miguel recostou-se na parede. Os dois homens já haviam recolhido todo o dinheiro e pareciam ir embora, até que um deles retirou o capuz e Simone o reconheceu, era o mesmo homem que tentara assaltar Miguel e que ela conseguira conter com seus golpes de karatê e taekwondo. O sujeito então a encarou cheio de raiva e disse:

– Eu disse que iria pegar vocês, seus veados! – após dizer isso puxou o gatilho e atirou na direção de Simone. Tudo aconteceu de forma tão rápida que ela não pôde compreender muito bem. Miguel jogara-se na frente do revólver e fora atingido no peito. Simone só conseguiu gritar, tão alto quanto podia: MIGUEL! MIGUEL!

Os dois homens saíram às pressas da padaria, correram para o carro. Mas antes que pudessem partir, foram surpreendidos. Um extintor fora jogado com tanta força sobre o vidro do automóvel que este se espatifara completamente. Em seguida, um tiro atingiu uma das rodas dianteiras. Simone encarava-os com seus olhos verdes, cheia de ira e revolta, segurando uma arma:

 – Covardes! Vocês não são homens, são ratos!

Sem pensar, atirou duas vezes e baleou os assaltantes. Por fim, ateou fogo no carro e nos sujeitos. Se não tinham sido mortos pelas balas, morreram carbonizados. Naquela noite, então, houve três mortes e uma prisão. No noticiário, o rosto de Simone, chamada de assassina, de homicida brutal: ”Travesti mata três homens e se entrega”.

*

Durante muitos anos, Simone ficou presa. Não respondeu pela morte de Miguel, como informou falsamente o noticiário. Foi acusada e condenada pela morte dos dois assaltantes e apesar de alegar ter feito aquilo por ter visto os dois matarem seu marido a sangue frio, em verdadeiro latrocínio, não teve a pena atenuada. Na prisão fez amigos, conheceu histórias ainda piores do que a sua, chorou e pensou muitas vezes que iria morrer, pediu por isso, mas sempre se lembrava do seu querido Miguel, seu rosto bondoso, sua voz suave, sua mão em seus cabelos, confortando, animando e dizendo para não desistir: fique viva, moça, fique viva!

Quando finalmente cumpriu sua pena e deixou a prisão, Simone se viu novamente sozinha e sem saber o que fazer. Descobriu, então, que Miguel havia lhe deixado tudo, a casa onde moravam, o prédio onde funcionava a padaria e algum dinheiro no banco. Não sabia o que fazer com aquilo, não sabia nem se queria continuar viva. Sua vontade era morar em um sítio, rodeada de gatos e cachorros. Então se lembrou de um velho projeto, um velho sonho que tinha: ajudar pessoas que eram como ela, que não tinha casa nem ninguém para apoiar, orientar.

Da dor e do caos, Simone fez brotar a vida e a esperança. Fundou uma ONG, uma Organização Não Governamental, que acolhia, orientava e dava suporta a jovens LGBT em situação de risco. Assim, no lugar onde funcionara um dia a padaria de seu marido, agora havia a sede de sua Organização. Ali, naquele lugar, onde antigamente ia todas as manhãs comprar sonhos, onde conhecera o amor, a ternura, a felicidade, ela podia agora auxiliar pessoas que por conta do preconceito, da homofobia, da transfobia, também haviam sido abandonadas, discriminadas, violentadas, marginalizadas. Era Simone quem permitia, agora, que outras meninas e meninos pudessem sonhar.

Mesmo depois de tudo que passara, de todo caos, de toda dor e revolta, Simone se sentia viva e, ao seu lado, tinha ainda o amor de Miguel, que continuava lhe dando força e coragem. É preciso resistir, persistir, ter coragem, moça! – antes de dormir ou nos momentos de angústia, ouvia sempre a sua voz, doce como os sonhos que ele fazia.


***
FINAL 2

O casamento finalmente aconteceu e tudo ia bem. Simone já morava com Miguel e sentia-se, a cada dia, mais feliz. Mas não havia uma única noite que não pensasse nas outras pessoas que eram como ela, em todas aquelas e aqueles que eram excluídos e marginalizados pela sociedade, abandonados por suas famílias, escorraçados de casa, obrigados a se prostituir e muitas vezes entregues às drogas. Queria poder fazer algo, mas o quê?

– Você vai encontrar uma forma de ajudar as pessoas, minha querida, tenho certeza – dizia Miguel, sempre sorridente, sempre otimista.

Anoitecia e mais uma vez, Simone e Miguel preparavam-se para fechar a padaria. Ela fechava o caixa e ele abaixava as portas de ferro, varria o chão, limpava as mesas e deixava tudo arrumado para o outro dia. Mas antes que pudessem concluir, os dois ouviram um barulho forte na porta, um carro estacionara de modo violento e abrupto. Dois homens encapuzados desceram e invadiram a padaria, ambos armados e cheios de ódio.

– Não reajam ou matamos! – gritou um deles.

Tremendo, Simone entregou todo o dinheiro do caixa. Miguel recostou-se na parede. Os dois homens já haviam recolhido todo o dinheiro e pareciam ir embora, até que um deles retirou o capuz e Simone o reconheceu, era Otávio, o mesmo homem que tentara assaltar Miguel e a quem ela conseguira conter com seus golpes de karatê e taekwondo. O sujeito então a encarou cheio de raiva e disse:

– Eu disse que iria pegar vocês, seus veados! – após dizer isso puxou o gatilho e atirou na direção de Simone. Tudo aconteceu de forma tão rápida que ela não pôde compreender muito bem. Miguel jogara-se na frente do revólver e fora atingido no peito. Simone só conseguiu gritar, tão alto quanto podia: MIGUEL!

Os dois homens saíram às pressas da padaria, correram para o carro. Mas antes que pudessem partir, foram surpreendidos. Um extintor fora jogado com tanta força sobre o vidro do automóvel que este se espatifara completamente. Em seguida, um tiro atingiu uma das rodas dianteiras. Simone encarava-os com seus olhos verdes, cheios de ira e revolta, segurando uma arma:

– Covardes! Vocês não são homens, são ratos!

Sem pensar, Simone partiu para cima dos dois sujeitos, conseguiu desarmar Otávio antes que pudesse atingi-la e o deixou imobilizado no chão. O outro, vendo que não ganharia a luta, tratou de fugir, mas foi baleado na perna por Simone.

– Por favor, n-não me mate, dona, não me mate… – disse o homem, jogado ao chão, com a perna sangrando e urinando-se de tal forma que formou-se uma poça de sangue e urina sob suas calças.

– Eu não sou uma assassina como vocês! – respondeu Simone entre o pranto e o ódio.

Não demorou para que se formasse um grande tumulto em frente a padaria. A polícia não tardou a chegar. Simone, que estava abraçada ao corpo de seu marido, relatou o que aconteceu. Diversos moradores do bairro, que haviam assistido tudo de suas casas, pelas janelas, confirmaram a sua versão. Otávio e seu comparsa foram hospitalizados e presos, acusados de latrocínio. Simone responderia, em liberdade, a um inquérito, mas acabaria sendo inocentada, tendo agido em defesa própria e sem intenção de machucar os bandidos.

Na noite do crime, o noticiário local anunciava, para surpresa de muitos: ”Dois homens assaltam padaria e matam o proprietário. A esposa da vítima, uma mulher trans de 35 anos, reagiu após os disparos e imobilizou os criminosos no local, com golpes de karatê e taekwondo.

    *

Durante alguns meses, Simone ficou isolada em casa, praticamente sem contato com outras pessoas. Havia sido um duro golpe perder Miguel, seu amor, seu companheiro, o homem que a havia aceitado, acolhido e amado. Triste, deprimida, chorou por muitas noites, chorou e pensou muitas vezes que iria morrer, pediu por isso, mas sempre se lembrava de Miguel, seu rosto bondoso, sua voz suave, sua mão em seus cabelos, confortando, animando e dizendo para não desistir: fique viva, moça, fique viva!

Numa manhã de quinta-feira, enquanto assistia ao telejornal, uma notícia chamou atenção de Simone: Grande é o número de adolescentes e jovens LGBT expulsos de casa, agredidos, violentados e discriminados no Brasil. Um estudo recente revela que o preconceito e abandono é maior em se tratando de transsexuais. Ela se lembrou, então, de um velho projeto, um velho sonho: ajudar pessoas que eram como ela, que não tinham casa nem ninguém para apoiar, orientar.

Com o dinheiro que herdara de Miguel, Simone criou uma fundação filantrópica e sem fins lucrativos que acolhia, orientava e dava suporte a adolescentes e jovens LGBT em situação de risco. Sem que pudesse imaginar, passou a contar com diversos investimentos e auxílios, vindos tanto de empresas privadas como de instituições públicas, órgãos preocupados com os direitos humanos. No lugar onde funcionara um dia a padaria de seu marido, onde ela ia todas as manhãs comprar sonhos e onde conhecera seu amor, passou a funcionar Fundação Miguel Arcanjo, um lugar onde pessoas discriminadas e abandonadas de diversas formas podiam encontrar apoio e força para continuar a sonhar e a lutar.

Mesmo depois de tudo que passara, de todo caos que tomara conta de sua vida, de toda dor e revolta, Simone se sentia viva e com coragem. Nas noites mais duras e difíceis, em que sua fé e sua confiança pareciam ameaçadas, a voz de um anjo lhe soprava, animadora: É preciso resistir, ter coragem, moça!

 

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Charles Berndt (Instagram) é professor e cursa seu doutorado em literatura na UFSC. É viciado em utopias, em palavras etéreas, mas ainda não foi pra Nárnia por acreditar que dentro deste mundo há um outro possível, mais justo, sensível, igualitário e fraterno.