Dizem que ele mora aí. Atrás das placas antigas, das folhas metálicas, dos vidros que se foram. Dizem que ele faz a barba, mima o cachorro, continua a polir loucamente o ferro que resta. Ninguém sabe quando decidiu trazer sua casa para cá – ou fazer dessa kombi sua morada. Ao que consta, é apenas o cachorro que o impede de viver só, como a velha perua o impede de viver ao relento. Não escolheu praia, mata, duna. Apenas a sombra de prédios imensos e de algumas árvores que sobraram no bairro. Não sei de onde tira vontade para pentear o cabelo, não entendo o rosto polido. O asseio com que espalha e emenda os cobertores de alumínio camuflando o carro contra os olhos sabe lá de quem. Passo uma, duas, três vezes por ele – acampo a atenção à volta de sua vida. Por um momento penso em dizer bom-dia, mas fico imaginando se não foi um bom-dia que o fez querer viver aqui.
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Tarso de Melo (1976) é poeta, professor e advogado. Doutor em Filosofia do Direito pela USP. É autor e organizador de diversos livros. Seus primeiros livros de poesia estão reunidos no volume Poemas 1999-2014 (Dobra/E-galáxia, 2015). Autor também de Íntimo desabrigo (Alpharrabio/Dobradura, 2017), Dois mil e quatrocentos quilômetros, aqui (com Carlos Augusto Lima; Luna Parque, 2018) e Alguns rastros (Martelo Casa Editorial, 2018). Este texto faz parte da obra Íntimo desabrigo, publicado pela Alpharrabio/Dobradura, 2017.