COLUNA LORCA
POR CHARLES BERNDT
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Contém spoiler
Nesta semana, gostaria novamente de partir de alguns filmes para ilustrar e dialogar com algumas reflexões e discussões que pretendo apresentar. Assim, adianto o assunto: insurreição feminina. Numa sociedade machista, patriarcal, misógina e falocêntrica como a nossa, não é nenhuma novidade o lugar de subalternidade ocupado, ainda, pelas mulheres. É evidente que muitas coisas mudaram em muitos países, sobretudo ocidentais, onde as mulheres votam, decidem com quem casar, moram sozinhas, têm sua profissão, seu trabalho, vestem-se como querem, ou seja, vivem uma vida quase igual àquela vivida por muitos homens. Pois é, eu disse quase.
A verdade é que, apesar de diversos avanços, da conquista de uma série de direitos, as mulheres ainda precisam conviver com muito preconceito e muita desigualdade com relação aos homens: a objetificação do corpo feminino, as polêmicas envolvendo questões relacionadas à saúde e ao corpo da mulher, os diversos crimes de feminicídio, estupros etc. É grande o número de opressões sofridas por elas todos os dias, situações que, ouso dizer, muitos de nós, homens, sequer imaginamos ou podemos compreender profundamente. Mas estou aqui, humildemente, fazendo esse esforço, de modo a tentar discutir algumas questões feministas.
Em primeiro lugar, compreendo que o feminismo não diz respeito apenas às mulheres, mas também é algo que envolve os homens e todas as pessoas da nossa sociedade. O feminismo nos possibilita olhar o mundo a partir de um outro prisma, desconstruindo muito do que aprendemos ainda muito pequenos, em casa, com a nossa família. A misoginia e a subalternização das mulheres, tal como o racismo e a homofobia, por exemplo, fazem parte da nossa cultura e é preciso um grande esforço para perceber isso e poder lutar por uma mudança de pensamento e modo de agir. A visão patriarcal, por sua natureza, é opressora e autoritária e tende, sempre, a objetificar e silenciar todos aqueles que não se encaixam no seu padrão normativo. Assim, a própria crença de que a natureza existe apenas para servir aos interesses humanos, a falta de solidariedade e respeito para com o meio ambiente, para com os outros animais, tem relação com a visão opressora, autoritária e violenta da cultura patriarcal.
Diversas discussões, dentro do campo feminista, apontam para a necessidade de não só lutar pela emancipação feminina, mas pela emancipação de outros sujeitos subalternizados também, bem como lutar por uma mudança de pensamento e de relação com a natureza, com o meio ambiente, com o mundo e as suas outras formas vida. Esse pensamento recebe, constantemente, o nome de ecofeminismo, que seria a tentativa de construir um mundo mais fraterno, mais solidário, baseado em relações de troca, de diálogo, e não em relações de poder, de autoridade e opressão.
Gostaria de traçar um paralelo entre essa breve reflexão feminista e três filmes assistidos por mim recentemente, que trazem justamente um questionamento, metafórico em alguns casos, à cultural patriarcal. O primeiro deles chama-se A cerimônia (La cérémonie). É um filme francês, de 1995, dirigido por Claude Chabrol e estrelado por Isabelle Huppert. Neste filme, a personagem principal é uma mulher chamada Sophie, que vai trabalhar como empregada doméstica na casa de uma família abastada do interior francês. Sophie acaba por sofrer uma série de pequenas humilhações e esconde dos patrões o seu maior segredo: o analfabetismo. Em sua vivência na pequena cidade, ela acaba por conhecer Jeanne (Isabelle Huppert), uma bisbilhoteira funcionária dos Correios, que irá se unir a ela para se vingar dos patrões de um modo sádico e violento. Fica patente, assim, não só a crítica ao modo como se dão as relações entre empregador e empregado, mas a própria lógica colonialista que ainda vigora sobretudo no ambiente do trabalho doméstico.
O segundo filme chama-se Respire e também é uma produção francesa, de 2014, dirigida por Mélanie Laurent. De modo breve, o que se pode dizer é que se conta a história da amizade de duas adolescentes: Charlie e Sarah. A primeira delas é uma garota contida, tímida, que convive com um pai agressivo e uma mãe submissa; a segunda, Sarah, é exatamente o oposto da amiga: extrovertida, falante, popular e bem articulada. Com o tempo, Charlie descobre que a vida perfeita de Sarah é uma mentira e que ela, na verdade, convive com uma mãe agressiva e alcoólatra, no subúrbio da cidade. As duas brigam e o embate é mortal. Tudo só termina quando Charlie, cansada das humilhações e agressões que a amiga vinha lhe infringindo na escola, sufoca Sarah com o travesseiro, em sua cama. Então, o espectador ficará pensando se, afinal de contas, Charlie realmente cometeu um homicídio ou se essa foi apenas uma forma metafórica de se mostrar a sua insurreição, o seu ato de rebeldia, a sua decisão em não mais aceitar calada tantas agressões.
O terceiro filme é uma produção franco-brasileira e se chama As boas maneiras, dirigido por Marco Dutra e Juliana Rojas, lançado no Brasil em junho deste ano. O filme conta a história de Clara, uma jovem negra que vai trabalhar como empregada doméstica na casa de Ana, uma mulher rica que está grávida e vive solitária num apartamento em São Paulo. Em verdade, o filme é uma releitura contemporânea da lenda folclórica do lobisomem, já que o bebê de Ana, Joel, é filho de um lobisomem com quem ela teria se envolvido. Contudo, o menino lobisomem acaba por matar a mãe no dia de seu nascimento e será criado por Clara, na periferia de São Paulo, que nas noites de lua cheia o acorrentará para evitar que se machuque e seja visto em sua face monstruosa e peluda. Claramente, percebe-se que estamos diante de uma alegoria, mais uma vez. O filme de Dutra e Rojas trata, assim, da luta de classes, das barreiras, dos muros que separam os bairros nobres das favelas e dos monstros que as cercam, questionam, provocam rupturas. Ana e Clara, por si só, já são mulheres que questionam o seu tempo e a lógica patriarcal – vale dizer que as duas, antes do nascimento do menino, vivem uma relação afetiva, amorosa e sexual. Por fim, o menino lobisomem surge como a personagem que melhor metaforiza o subalterno, o favelado, aquele que é excluído, marginalizado, escondido da sociedade, que vive à margem e é temido pelas moçoilas e moçoilos brancos do asfalto.
Desse modo, através desses filmes e da breve discussão sobre alguns aspectos do feminismo, deixo aqui o convite para que não só assistam a estas belas produções cinematográficas, mas para que pensem no quanto nosso cinema, nossa literatura, nossa arte contemporânea, de modo geral, tem estado permeada por questões sociais, por discussões atuais e cada vez mais necessárias. A arte imita a vida? Ou a vida é que precisa da arte para ser melhor vivida, repensada, ressignificada e nos colocar diante dessas questões? O mundo que aí está precisa ser repensado e a arte parece ser crucial para que pensemos nas mudanças necessárias, para que gestemos, pouco a pouco, nossas revoluções internas e cotidianas que mudarão o planeta.