KHEPRA: A ESCOLHA DO ESCARAVELHO – JOÃO PAULO PARISIO

À memória do Museu Nacional do Rio de Janeiro,
em homenagem a todos os funcionários e colaboradores
ao longo dos seus dois séculos de existência
e dois dias de inexistência.

 

A água é fina, bem o sabe e diz qualquer encanador experiente. Pouco a pouco vai se infiltrando em toda parte, se não a contemos diuturnamente, renovando e reparando os dutos. No bicentenário palácio de São Cristóvão, duzentos precisos anos completos este ano, e que foi a residência da família imperial brasileira, não é diferente. Este filete que não vemos acha uma nova saída para o ar, sua porção anterior sugere uma cabeça de larva de traça saindo do casulo e tenteando para em seguida recuar. Esta não recua, não pode recuar. Sob pressão do próprio corpo, desprende-se dele, goteja! Cai através da escuridão do setor de entomologia (de modo que continuamos a não ver), como de resto deveriam estar escuros todos os demais setores, na direção certa das costas de um escaravelho em estado de filactério, muito embora sete minutos antes tenha passado a sonhar com uma menina que mora num apartamento velho em Botafogo, após um longo hiato de vazio. Despedaça-se a gota na armadura dourada ao centro e verde cintilante em direção às extremidades – também não a vemos, nenhuma luz incide nesses fenômenos, convém concebê-los sem, no entanto, visualizá-los.

Raios ramificados lampejam nos neurônios do escaravelho, uma árvore instantânea auriverde aqui, outra ali. Começam a comunicar-se, integrar-se, virar teia: a atividade integral é retomada. “Morna”, pensa ato contínuo. Com efeito, há um calor incomum no recinto mesmo considerando sua origem e seu destino. Não não, ele não é egípcio nem pertence à espécie do escaravelho-sagrado, mas um Cetonia aurata nativo do sudeste da China, onde numa carnação do século XV, arredores de Nanquim, sonhara ser o imperador Yung-lo ou Yongle sonhando ser ele sonhando ser o imperador Yung-lo ou Yongle, acendendo-se no seu íntimo o desejo de imortalizar-se, contudo sem a morbidez literalista dos faraós. Imortalizar-se através de uma obra. Miríades de sábios trabalharam sob sua regência para a composição da Enciclopédia Yongle, a maior do mundo. No século XVIII, oitocentos volumes dela foram queimados em confrontos com os britânicos. Outros tantos saqueados por europeus, americanos e japoneses durante o levante dos Boxers, em 1900. Dos onze mil livros originais, restam quatrocentos espalhados pela crosta terrestre.

Percebe em volta o rumor do despertar de milhares de tardígrados. Mau presságio. Não por acaso são chamados de ursos d’água; estes dorminhocos não despertam em vão. Não há testemunhas e as câmeras, se funcionassem, não identificariam o movimento no breu, a não ser que fossem de infravermelho. Não são. Nunca serão. O que ninguém vê: Khepra – em tempo: todo escaravelho se chama Khepra, escaravelho em egípcio, porque sabe que são um só escaravelho multiplicado em espelhos e rimas, assim como cada reflexo do sol em água, vidro, escama e olho é ainda seu corpo, seu generoso ente. O que ninguém vê: Khepra estremece, tremelica as asas, distende as enguiçadas pernas, testa as antenas, como que espreguiça-se, desenferruja-se. Dor em todas as dobradiças. Desprende-se do fixador. Cai. Cara ou coroa? Barriga pra cima. “Maldição”, pragueja. Bole as pernas, percebe que nesse frenesi não chega a nada, não se ajuda, atrapalha-se. Respira por sete vezes com todo o corpo, coordena os membros e os esforços, desemborca-se. Mais milagroso que se andasse sobre as águas, caminha sobre a terra. Suas glândulas começam a produzir os lubrificantes para as engrenagens interiores, vai ganhando desenvoltura, a dor se mitiga. Pressente a urgência. Espreme-se por uma brecha na vidraça (tem apenas vinte e um milímetros), ganha a – liberdade? Em vidros, porcelanas e esmaltes remotos, percebe os primeiros reflexos do fogo, reflexos que se refletem nele – podemos começar a imaginá-lo, nessa penumbra cambiante, mas ainda com parcimônia. Já viu arderem muitas bibliotecas, palácios, fortalezas. Que dizer do fogo? O fogo não respeita nada. Ou melhor, entre as poucas coisas que respeita, está a água. Ou teme.

Para, soergue a cabeça, move as antenas curtas, orienta-se. Ouve ruídos de desmoronamentos, dilacerações, derretimentos, o riso do fogo. Apressa-se. Poderia voar, tem boa navegabilidade, mas sabe-se demasiado leve, uma dessas rajadas geradas pelo fogo pode perdê-lo, e quem sabe sinta com perigosa intensidade a atração da luz. Junto à terra, é menos suscetível a feitiços. Hesita sobre o caminho a seguir apenas duas ou três vezes. Adentra o salão das múmias, ou melhor, detém-se na soleira. Três múmias, ele é um só, não há tempo a errar. Ao menos as três, todas advindas de Tebas, atendem aos critérios de pureza, desde há muito em abstinência sexual e longe do contato com embalsamadores, mulheres menstruadas, outras impurezas. Evidentemente. O sacerdote Hori é a escolha natural. Pode manipular o Heka para reverter o fogo. Precipita-se. Põe-se a galgar o sarcófago de madeira policromada com mais de dois metros de comprimento. Estanca, súbito. Passados mais de três mil anos, e sendo um conhecedor dos mistérios escondidos nas entranhas do mundo, o sacerdote Hori já deveria ter se tornado uma estrela na vasta e esplendorosa carne de Nut. Condescenderia ele, agora, em cair das vertiginosas alturas e reincorrer na matéria corruptível do mundo sublunar? Pouco crível. Não menos que estapafúrdio. Demasiado incerto.

Khepra olha para os lados. Harsiese é menos antigo, e não era sacerdote, mas o toucado e a barba da tampa do caixão imitam os deuses; essa alma presunçosa de aristocrata não quererá retornar ao corpo para outra coisa senão salvar a própria pele. Relanceia a tumba de madeira estucada de Sha-Amun-en-su, de apenas um metro e cinquenta e oito centímetros. Requisita-se informações sobre ela, aguarda o esquadrinhamento da memória com certa impaciência, sem deixar de apreciar a velocidade do processamento de dados. Chega a alegrar-se com a própria funcionalidade após tanto tempo inerte. Sha-Amun-en-su era uma cantora-sacerdotisa de Ámon, o Oculto, primitivo deus dos ventos, conquanto poucos lembrassem esse atributo primitivo à época em que ela vivera. Khepra lembra bem, como se fosse hoje, porque sempre ainda é hoje. Nada passa. Sabe igualmente que em troca de um livro o quediva Ismail, então governante do Egito, dadivara com ela Dom Pedro II.

Se Sha-Amun-en-su for capaz de com seu canto, pronunciando as palavras certas com a intensidade e a modulação precisas, os gestos correspondentes, o espírito adequado, invocar um vento fortíssimo, poderá talvez apagar o incêndio. Se o sortilégio não for impecabilíssimo, o vento não for forte o suficiente, apenas alimentará o inimigo, apressará o fim, a derrocada. Que encalacrada. Que entaladela. Ámon, porém, atrai a vitória nas batalhas. Com um curto arco de voo, Khepra transfere-se para o sarcófago da cantora, espreme-se por uma brecha, encontra-a, penetra-lhe o ouvido direito. Esse trajeto conhece bem, o roteiro por esse labirinto na palma da alma, não precisa de fio ou migalhas de pão até porque não tenciona trilhar, tão cedo, o caminho de volta. Sim, há pequenas variações de pessoa para pessoa. Pequenas, insignificantes, enquanto ele é Khepra. Esse trajeto conhece bem, assim como o sol acha seus caminhos sob a terra, ao se por. Atinge o coração, pequena bolsa de couro enrugado. Mas Heka faz seu trabalho. Devolve à cantora sangue e linfa, pulsação, frescor, pujança, viço, ritmo, voz. Diminuta mão negra afasta a tampa do sarcófago, dele se ergue a mulher pequena que poderia ser tomada por brasileira nata, as ataduras tombam ao pé da nudez. Conhece a fórmula. Khepra e o Ba de Sha-Amun-en-su estão em íntima conexão quando começa a canção prescrita. O fogo se assusta, susta o riso, recobra-se, sussurra, sibila, cicia provocações, insultos, nada disso macula a execução perfeita. “Agora virá o vento”, pensa Khepra, conhece a infalibilidade destas coisas. Se a canção de invocação do vento foi impecável, o vento virá, perfeitamente, e arrasará o fogo, salvará muito de tudo. Por que demora tanto? Por que não se ouve ao longe seu rumor nas copas das árvores? Por que este nada? Pensam Khepra e Sha-Amun-en-su. Em uníssono silente, entendem. Num país onde a própria palavra e a lei codificada por meio dela haviam caído em desgraça, mesmo as fórmulas ancestrais eram ineficazes. Rastejando por artérias e canais como pelas cloacas de Tebas, Khepra retorna, emerge por onde entrou. Sha-Amun-en-su emite um último canto ou grito enquanto desidrata-se, desintegra-se. Poderia ficar e sacrificar-se em solidariedade com o resto, sabe que não há morte, ao menos não para ele. No entanto há o horror atávico e universal do fogo. No que toca aos vivos, a dor é para todos, ao contrário do que sustenta o cinismo dos homens que dizem que insetos não sentem dor, mesmo vendo que uma formiga se estorce e desespera se lhe arrancam uma perna.

A destruição avançou muito. Khepra apressa-se mais. Deixa pegadas nas cinzas do que fora o crânio de Luzia, que um redemoinho, uma coluna giratória de fogo, um elemental em festa e fúria, mistura às cinzas da Carta da Independência, da Crônica de Nuremberg, da Bíblia Poliglota de Antuérpia, da primeira edição de Os Lusíadas, que não teve a sorte do manuscrito salvo, segundo a lenda, da inundação do Mekong por Camões, em detrimento de Dinamene, sua amante chinesa (“Ó o pêndulo e a balança do destino, o original escapou à água, a primeira cópia sucumbe ao fogo”, pensa Khepra), da primeira edição da Gramática de José de Anchieta, do primeiro jornal impresso do mundo, datado de 1601. Criará o elemental um heterogêneo golem de cinzas? Parece que não. Da mesma maneira que as mistura em seu turbilhão, o demônio as dispersa, desperdiça pelas janelas cujos vidros, por si só relíquias, estouraram com um clamor. Dir-se-ia, quando cambia, vai e vem, dançando por alegrias, que com a imagem da mulher inteiro se identifica. Todos os gestos da mulher que então possui dir-se-ia: gestos dos olhos da mulher, de seu cabelo, sua língua; gestos do corpo de uma dançarina, não qualquer dançarina, uma bailadora andaluza, de seu fogo agônico, fogo de carne inflamada, só flama.

Mesmerizado, Khepra quase não percebe o avanço do redemoinho sobre si, recua com a técnica antiga de andar desse jeito empurrando bolotas de esterco, segura-se firme lançando mão das serrilhas das pernas, dá dois ou três olés no inimigo, mal consegue prosseguir. Percebe que não será possível evadir-se se não assumir o risco de alar-se. Abre as asas, distende-as algumas vezes antes de levantar voo e em meio a chicanas, parábolas e rasantes evita as labaredas e deixa o palácio para trás, sentindo a infusão única em toda a história do mundo: cheiro dos esqueletos de baleia jubarte e do angaturana, de vertebrados e invertebrados, inclusive as borboletas do gênero Dynamine (ó o pêndulo e a balança do destino!), de estátuas de cera que representavam pessoas com leishmaniose às quais faltavam pedaços, dando a impressão de que derretiam, e cujas estátuas agora derretem, de uma solitária imensa, de afrescos de Pompéia que o Vesúvio deixara incólumes.

Só quando amanhece, Khepra, em cãibras, desce em direção a um edifício velho em Botafogo e choca-se contra uma janela dentro da qual reina a penumbra, magoando-se repetidas vezes. A menina com que sonhava antes de ser atingido pela gota, e que sonhava com um filactério de escaravelho em simultâneo, acorda com as batidas persistentes. Jung estranhou que, precisamente quando escutava de uma até então impenetrável paciente o relato de um sonho em que ganhara um escaravelho de ouro, um Cetonia aurata, “ao contrário de costumes habituais” se visse “na necessidade de entrar em uma sala escura”, chocando-se contra a janela. Fugia ele talvez do incêndio do palácio de São Cristóvão, pois o tempo, sabe Khepra, está longe de ser uma reta ou seta unidirecional. Modelo muito mais aproximado é o sistema circulatório com seus múltiplos sentidos e direções, idas e voltas, ou o sistema respiratório de um inseto. “Ó Amon-Rá, porque fizeste o ser humano tão insensato?”

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João Paulo Parisio (Instagram / Site) escreveu o livro Homens e outros animais fabulosos (contos) que sairá pela editora Patuá ainda esse ano. É autor também de Legião Anônima (contos) e Esculturas Fluidas (poemas), publicados pela Cepe editora e ambos incluídos na lista de melhores do ano organizada pelo crítico literário Alfredo Monte.