COLUNA BLACKTUDE
POR MARCOS RAMOS
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Escrevo porque estou vivo. Escrevo porque tenho o privilégio de estar. Privilégio negado a quem sai e não volta, privilégio negado a quem morre e depois de morto tem que provar inocência. Escrevo para deixar marca. Alguma história que me inocente. Alguma história que faça permanecer, ou linhas que me condenem de uma vez.
Mas parece que já nasci condenado. Perante certas vertentes de uma lei que não é nossa, somos bem culpados até que o contrário se prove. Para quem tem a lei ao seu lado, essa afirmação, talvez, não faça muito sentido: somos todos iguais, somos humanos – há quem diga. O velho papo da paz para todos. A paz é de todos, mas de todos que moram do lado mais iluminado da avenida.
Na prática, a realidade é outra. Talvez não na minha realidade, pois, como disse, tenho o privilégio de estar vivo. Mas sim, na outra margem, a realidade é outra.
À margem, o tiro vem primeiro e depois vem a pergunta. Nessa exata ordem. Não há exceção. A pergunta não é quem matou – essa resposta a gente quase sempre já tem – a pergunta é sobre o quanto de culpa tinha quem morreu. E, se morrer pela mão do sistema, pela ferramenta do Estado, a culpa sempre aparece, mais rápido que notícia ruim. E, geralmente, a notícia é bem ruim.
Ruim para quem morre, ruim para quem fica. Quem fica tem que lidar com a segunda morte, a morte da história. História de alguém que tem que se provar inocente, mesmo depois de veredito e execução.
Estou sofrendo meu luto de perder um filho e estou sofrendo mais e mais com essas coisas feias que estão saindo sobre ele – declara a mãe em pranto. Marcos Vinícius morreu entre a escola e a Maré. Eles não viram o uniforme, mãe? – Marcos Vinícius morreu de novo. Pelas bocas de quem queria justificar o sangue derramado: Era bandido, envolvido com o tráfico, tem até foto pra comprovar.
É preciso justificar os tiros. Nessa hora a velha expressão bandido bom é bandido morto ganha auxílio. Auxílio da mídia, das redes sociais, dos cidadãos de bens… Se for criminoso, bandido, fez-se um favor à sociedade. Mereceu.
Maria Eduarda morreu dentro da escola, no pátio, uniformizada, durante uma aula de educação física. Mancharam o chão da escola, sua roupa, seu corpo. Mas para justificar sua morte e inocentar seu executor também mancharam sua história. Logo, Maria depois de morta, nas mãos e olhos de quem nunca a viu, tornou-se criminosa, mulher de bandido e segurava armas em festas de traficantes já aos quinze anos… Mesmo tendo perdido a vida aos treze.
Maria morreu duas vezes.
Na favela a família tem que ir atrás do corpo e depois atrás de um álibi para defender a vítima. Provar que não mereceu: eram trabalhadores. Não tinham passagem pela polícia. Estavam comemorando o primeiro salário do amigo. Não mereciam levar 111 tiros da polícia.
Não mereciam. Mas quem merece?
Quando um negro morre, quando alguém da periferia é assassinado, o que se quer saber é se mereceu. Onde estava? O que vestia? Com quem andava, onde morava? Coisa boa não poderia ser, olha onde estava. Mas quem decide quem merece morrer ou viver?
Foi por achar que se tratava de um bandido que um policial se sentiu seguro o bastante para atirar na cabeça de Vânia Silva, costureira de 36 anos, moradora de Duque de Caxias. Mãe. O desespero do policial, ao descobrir que se tratava de uma mulher inocente, deveria ser entendido como lição o suficiente para provar a irracionalidade que orienta a lógica nefasta de que alguém, por ser criminoso, merece ser morto brutalmente. Ao crer que se tratava de um bandido, sua morte era justificável, logo ele atira, sabendo que o ideal, ali, é matar.
Porém mais que uma polícia que mata de forma discriminatória, vê-se uma sociedade, um estado e uma grande mídia que se vê na necessidade de projetar naquele que morre a imagem e o histórico do bandido, assim, lavando as mãos de qualquer culpa.
A necessidade de justificar um crime contra a vida de alguém, faz com que verdades sejam forjadas, imagens sejam vinculadas, notícias sejam inventadas, histórias sejam mudadas. Isso, com o propósito de se desculparem pelas mortes daqueles que, estatisticamente, já se encontram na zona de perigo.
No Brasil, a cada cem pessoas assassinadas, 71 delas são negras – segundo dados de 2017 – de maioria jovem e de periferia. Uma mulher negra entre 15 e 29 anos possui duas vezes mais chances de morrer de forma violenta que uma mulher branca da mesma faixa etária. Morre-se mais. Duas vezes mais. Vide a cor da pele de Vânia, de Maria Eduarda, de Marielle.
Matam o preto todo dia. Depois querem apagá-lo. Destiná-lo a uma vala comum.
Forjam nossa história conforme o interesse de quem nos quer ver mortos, mas sem sentir o peso da culpa nas costas. Forjam nosso histórico conforme lhes apraz, para que essas mortes sejam vistas como um favor a sociedade. Mas, principalmente, maculam nosso passado para que pessoas como Marielle Franco morram como um cadáver comum – expressão usada por uma desembargadora carioca que hoje responde pelo crime de calúnia – vinculada a facções criminosas e traficantes, não como alguém que desafiou o sistema e decidiu questionar a violência para com os seus iguais.
Matam nossa história, nosso histórico, nossa cultura, com o intuito de nos tornar apenas um bando de cadáveres comuns através dos tempos. Nossas vidas não importam, nossos heróis são difamados, nossa religião demonizada, nossa cultura embranquecida e nossa história manchada, quando não apagada.
Daí a necessidade de não baixar a guarda nem depois de morto.
Querem que morramos como alguém que não faz falta. Alguém que não possui uma história digna de ser levada adiante. Com o intuito de, efetivamente, nos eliminar. Vão querer apagar o que escrevemos e colocando o que quiserem nas linhas onde passarem a borracha.
Defendamos nossos corpos, mas defendamos também nossos mortos. Como uma mãe que não quer se seu filho morra mais uma vez.
Eu gostaria de desmentir que meu filho é bandido. Não era. – July Mary Silva, mãe de Marco Jonathan da Silva Oliveira, de 17 anos, um dos cinco mortos com tiros na cabeça na Chacina de Maricá.
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MARCOS RAMOS é cria da periferia de Diadema – SP, formado em Estudos Lusófonos pela Universidade de Coimbra, Licenciado em Letras -Português/Francês pela UNESP – Assis. Atualmente é mestrando em Literatura e Vida Social também pela UNESP e se encontra quebrado financeiramente, por conta de um estágio de pesquisa não remunerado que decidiu fazer às cegas na Sorbonne, além de correr contra o tempo para escrever e entregar uma dissertação.