|Lorca
Por Charles Berndt
Orfeu hoje veio ter comigo, veio sem arpa, vestindo jeans e fumando um cigarro. Sentou-se ao meu lado, suspirou fundo, olhou o céu, não leu nenhum dos seus versos. Eu pus minha mão em sua coxa, a outra enlacei sua cintura, senti o cheiro de seu pescoço. Então, alguns minutos depois, eu disse, cheio de ternura:
– Diz-me, Orfeu, amigo, o que é que te angustia?
Ele tirou seus olhos castanhos de uma nuvem branca que seguia para o norte, jogou fora o cigarro, que caiu numa poça de lama, e disse-me sem me olhar nos olhos, como sempre faz:
– Passou. Estou em outra. Eurídice já era.
Demorei alguns segundos para processar a informação. Assustado, surpreso, sem compreender direito, respondi então:– Céus. Achei que irias ao inferno para resgatá-la uma outra vez. O que houve? Cansaço?
– Não. Não vou mais. Não quero mais saber de ir ao Hades. Acho que você não entendeu. Eu disse que estou em outra.
– Em outra? Como assim, Orfeu?
Silêncio. Por alguns segundos eu vi o meu amigo se remexer no banco, afastar-se levemente de mim, a face branca tornou-se escarlate, acendeu outro cigarro.
– Eu… Eu…
Percebi que ele estava envergonhado, encabulado, que precisava me contar algo, algo importante e sério. Desta vez fui eu quem respirou fundo e procurou uma nuvem branca no céu que me ajudasse a pensar, pensar rápido. Veio, senti a epifania, a revelação, por um minuto quase adivinhei o que ele queria me contar:
– Estás apaixonado. Novamente. Tudo bem… Os tempos são outros. Quem é ela?
Desta vez, foi Orfeu quem me abraçou, pôs a mão sobre minha coxa, enlaçou minha cintura, respirou pausadamente e disse:
– Eurídice, a nova Eurídice, não é uma mulher. É um homem. É você.
A minha nuvem branca era uma ovelha rebelada, desafiava o vento, caminhava para o sul. Os meus olhos, temerosos, seguiram-na, tudo o que vi foi a boca rebelde de Orfeu. Ele compôs uma nova canção, nossas línguas dançaram.