COLUNA UIVOS
POR ROMULO NARDUCCI
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Como uma taça erguida para a luz¹
O “Príncipe dos Poetas Paraenses” – título que recebeu por diversas personalidades da época na festa de lançamento de seu livro “Ilusão”, em agosto de 1911 – pode não ser o poeta mais conhecido da literatura brasileira, mas sem dúvida a sua importância jamais deveria ser relegada.
Emiliano Perneta nasceu na zona rural de Curitiba, em 3 de janeiro de 1966 e, sim, foi um dos principais poetas da literatura brasileira. Se colocarmos na balança o fato de que Emiliano foi o fundador do clube republicano de Curitiba, um abolicionista inflamado – tendo defendido tais ideais em palestras e alforriado os negros curitibanos -, um dos fundadores do simbolismo no Brasil e um dos primeiros a divulgar e a incentivar a leitura de Charles Baudelaire no país, temos que o seu status quo de menestrel deveria estar páreo a páreo ao de poetas como Cruz e Sousa, Augusto dos Anjos e de seu companheiro de trabalho, Olavo Bilac.
O poeta paraense é reconhecido e festejado em sua terra natal, tendo morado em outras grandes cidades do Brasil como São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais e de forma concomitante à literatura exerceu o magistério, a advocacia e o jornalismo.
Como jornalista em São Paulo, no ano de 1888, fundou a Folha Literária com Afonso de Carvalho, Carvalho Mourão e Edmundo Lins; dirigiu a Vida Semanária (ao lado de Olavo Bilac) e foi colaborador da Gazeta de São Paulo e do Diário Popular. No Rio de Janeiro, além de colaborar com vários periódicos, em 1891, foi secretário da Folha Popular onde publicou as primeiras manifestações do Simbolismo no Brasil, publicando as poesias de Cruz e Sousa, Oscar Rosas e B. Lopes.
Após viver no interior de Minas Gerais entre 1893 a 1896, retornou a Curitiba definitivamente. Ao chegar à sua terra natal, encontrou o Paraná abalado pela Revolução Federalista, sendo que os trágicos impactos causados pelos conflitos geraram uma repercussão estimulante de sensibilização imaginativa no meio literário, o que possibilitou a fundamentação definitiva do movimento simbolista brasileiro, e em 1902 lançou a revista Simbolista chamada Victrix.
Porém, a sua obra literária começou influenciada pelos parnasianos, tendo o seu primeiro livro “Músicas”, publicado em 1888, e o panfleto “Carta à Condessa D’Eu”, marcados por textos positivistas e científicos, seguindo fielmente a cartilha do estilo.
Mas a partir da influência de mestres do simbolismo internacional, como Charles Baudelaire, Edgar Allan Poe, Stéphane Mallarmé, Paul Verlaine, Francis James, entre outros, e do próprio movimento simbolista que ajudou a cunhar no Brasil, no ano de 1914, Emiliano Perneta lançou aquela que foi considerada a sua maior obra-prima, o livro “Pena de Talião”.
Na poesia de Perneta, mesmo à fase simbolista, podemos encontrar características que se contrapõem ao abismo que o estilo se entrega na interiorização trágica e inconformada do mundo exterior. Num estudo crítico apresentado a fim de descrever a obra do poeta, Alceu Amoroso Lima e Alberto Alvin Corrêa definem:
(…) Entre todos os simbolistas brasileiros, pode-se dizer, Emiliano Perneta é o único a cuja poesia se poderá aplicar o qualitativo “solar”. ²
Em seus poemas, há um estado de espírito contemplativo onde os seus demônios seriam de fato uma criação intencional a fim de levar o leitor ao seu universo construído de uma forma criteriosamente melódica e sinfônica. Podemos dizer que para a sua poesia, ao contrário do que vemos na obra de poetas simbolistas como Cruz e Souza – onde o vislumbre catártico da insanidade algoz do mundo é uma necessidade de ser digerida para a criação -, bastava a inspiração refletida a partir de suas influências e de seu conhecimento empírico da dor alheia.
Mergulhem:
SONETO
Nada pode igualar o meu destino agora
Que o furor me feriu com um tirso de marfim,
Vede, não me contenho, o abutre me devora,
Com as suas mãos que são de nácar e jasmim…
Meu sangue flui, meu sangue ri, meu sangue chora.
E se derrama como o vinho dum festim.
Não há frauta que toque mais desoladora.
Ninguém o vê correr, mas ele não tem fim.
Possuísse, ao menos, eu, o dom de transformá-la
Numa folha, no aloés, no vento frio, no mar.
Ela que inda é mais fria e branca do que a opala.
Mas nada, nem sequer ao menos, eu, torcido
O tronco nu, o gesto doido, o pé no ar,
Hei de ver Salomé dançar como S. Cuido!
SÚCUBO
Desde que te amo, vê, quase infalivelmente,
Todas as noites vens aqui. E às minhas cegas
Paixões, e ao teu furor, ninfa concupiscente,
Como um súcubo, assim, de fato, tu te entregas…
Longe que estejas, pois, tenho-te aqui presente.
Como tu vens, não sei. Eu te invoco e tu chegas.
Trazes sobre a nudez, flutuando docemente,
Uma túnica azul, como as túnicas gregas…
E de leve, em redor do meu leito flutuas,
Ó Demônio ideal, de uma beleza louca,
De umas palpitações radiantemente nuas!
Até, até que enfim, em carícias felinas,
O teu busto gentil ligeiramente inclinas,
E te enrolas em mim, e me mordes a boca!
VENCIDOS
Nós ficaremos, como os menestréis da rua,
Uns infames reais, mendigos por incúria,
Agoureiros da Treva, adivinhos da Lua,
Desferindo ao luar cantigas de penúria?
Nossa cantiga irá conduzir-nos à tua
Maldição, ó Roland?… E, mortos pela injúria,
Mortos, bem mortos, e, mudos, a fronte nua,
Dormiremos ouvindo uma estranha lamúria?
Seja. Os grandes um dia hão de cair de bruço…
Hão de os grandes rolar dos palácios infetos!
E glória à fome dos vermes concupiscentes!
Embora, nós também, nós, num rouco soluço,
Corda a corda, o violão dos nervos inquietos
Partamos! inquietando as estrelas dormentes!
DOR
Ao Andrade Muricy
Noite. O céu, como um peixe, o turbilhão desova
De estrelas e fulgir. Desponta a lua nova.
Um silêncio espectral, um silêncio profundo
Dentro de uma mortalha imensa envolve o mundo
Humilde, no meu canto, ao pé dessa janela,
Pensava, oh! Solidão, como tu eras bela,
Quando do seio nu, do aveludado seio
Da noite, que baixou, a Dor sombria veio.
Toda de preto. Traz uma mantilha rica;
E por onde ela passa, o ar se purifica.
De invisível caçoila o incenso trescala,
E o fumo sobe, ondeia, invade toda a sala.
Ao vê-la aparecer, tudo se transfigura,
Como que resplandece a própria noite escura.
É a claridade em flor da lua, quando nasce,
São horas de sofrer. Que a dor me despedace.
Que se feche em redor todo o vasto horizonte,
E eu ponha a mão no rosto, e curve triste a fonte.
Que ela me leve, sem que eu saiba onde me leva,
Que me cubra de horror, e me vista de treva.
SOLIDÃO
Que bom se eu fosse aquele lavrador,
Que eu nunca pude ser e que eu não sou,
Que depois de lavrar os campos, flor,
Centeio, milho e trigo semeou…
Esse trabalho nunca lhe amargou,
Mas à hora doce e triste de sol-pôr,
Tanta canseira o pobre desfolhou,
Tanto fez, que semeou a própria dor…
E oh! que amargura, quando a noite vem,
Toda dum roxo frio de lilás…
Quem dera ser o lavrador, porém!
Entrar em casa, a mesa posta, os seus
Em derredor, a consciência em paz,
E tudo em paz, louvado seja Deus!
¹ Frase do poema “Sol” (Pinheiro: Eu sou como uma taça erguida para a luz …), de Emiliano Perneta. Ilusão e outros poemas. Re-edição Virtual. Revista e atualizada por Ivan Justen Santana. Curitiba: 2011
² Alceu Amoroso Lima e Alberto Alvin Corrêa, Nossos Clássicos, Emiliano Perneta, Ed. Agir, 1966, RJ, pág. 9.