O ANO EM QUE VIVI DE LITERATURA

Por Rafael Rodrigues

Viver exclusivamente de literatura, num país como o Brasil, é quase impossível. Segundo a pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, realizada pelo Instituto Pró Livro e divulgada em 2016, a média de leitura dos brasileiros é de cinco livros por ano. E não é necessário fazer qualquer pesquisa para saber que, desses cinco livros, poucas são as obras de ficção – as listas de Mais Vendidos dos jornais e revistas deixam isso bem claro. Entretanto, há quem consiga. Não dos direitos autorais – esse é um luxo do qual raros autores nacionais desfrutam –, mas de atividades ligadas à literatura: revisões, traduções, palestras, oficinas de escrita, participações em eventos literários etc.

Não é recomendável fazer determinadas afirmações sem o apoio de qualquer tipo de dado, mas não é tão arriscado dizer que a vontade – ou o sonho – de todo escritor é viver exclusivamente da literatura que produz. Passar os dias lendo e escrevendo, sem precisar trabalhar num emprego que nada tem a ver com literatura: qual autor não gostaria disso?

E uma das possibilidades que podem proporcionar esse luxo a um escritor é ganhar um – ou mais de um – grande prêmio literário. Além do valor em dinheiro, um prêmio tem, como consequência, uma série de convites que podem ser convertidos em fontes de renda. Além das atividades relacionadas à literatura, mencionadas no primeiro parágrafo, a venda do(s) livro(s) de um autor premiado é automaticamente influenciada pelo prêmio, sem falar na valorização do nome do autor no meio editorial, que pode levar até mesmo a uma editora encomendar um livro ao escritor e pagar antecipadamente pela obra.

Mas, num país como o Brasil – perdão, leitor, por usar novamente esse chavão -, até essa situação é um tanto quanto distante da realidade. Casos assim acontecem de tempos em tempos, e o mais recente, ao menos de que tenho lembrança, aconteceu com o escritor curitibano Cristovão Tezza.

Há dez anos, Tezza venceu, com o romance O Filho Eterno, os principais prêmios literários nacionais: Jabuti, Portugal Telecom (hoje Oceanos), São Paulo de Literatura e Passo Fundo Zaffari & Bourbon. Com os três últimos, Tezza ganhou 400 mil reais. Àquela altura, o escritor tinha quase trinta anos de carreira, e foi somente após quase trinta anos publicando livros que Tezza pode finalmente pensar em viver apenas de literatura.

E é esse assunto, viver de literatura, o gatilho do romance O ano em que vivi de literatura (Foz, 2015), do escritor gaúcho Paulo Scott. Nele, acompanhamos a vida de Graciliano, escritor que ganha um polpudo prêmio literário de 300 mil reais. Mas tudo o que envolve esse prêmio é nebuloso, desde a maneira como toma conhecimento da informação, através de uma das juradas, que faz a revelação durante uma relação sexual entre eles, até as suas consequências.

Ao receber o prêmio, Graciliano decide desistir da carreira de professor em Porto Alegre e mudar-se para o Rio de Janeiro, com o objetivo de viver exclusivamente de literatura. De imediato, o autor enfrenta um problema: a valorização imobiliária na Cidade Maravilhosa – o romance se passa em 2011. Não é fácil encontrar um apartamento dentro de suas possibilidades. Mas esse é o menor dos problemas de Graciliano. Além de não conseguir escrever um romance, contratado e já pago por uma editora, o protagonista toma uma série de atitudes inconsequentes, desde exageros etílicos e encontros casuais marcados pelo Facebook – bastante mencionado na obra, pois o protagonista se torna viciado na rede social, o que lhe traz alguns problemas -,  até o ato de roubar, sem a menor necessidade, um sebo, passando por um acidente automobilístico que por pouco não tira a sua vida.

Apesar de o romance ser sobre um escritor que ganha um prêmio literário, a obra não se restringe apenas a isso. Graciliano é um personagem bastante complexo, assombrado inclusive por questões familiares e amorosas que não estão atreladas ao mote do romance. Com isso quero dizer que O ano em que vivi de literatura não é uma obra apenas para literatos. Ela vai muito além.

Sobre o gênero conto, o argentino Ricardo Piglia disse que todo conto conta duas histórias: uma aparente, em primeiro plano, e outra secreta. A história aparente contada por Scott é sobre um escritor que ganha um prêmio literário e as consequências disso, o que por si só já seria interessante. Mas O ano em que vivi de literatura traz pelo menos duas histórias secretas: uma, amalgamada com a aparente, é a autossabotagem do personagem, talvez acometido por uma Síndrome do Impostor. A outra tem a ver com as já citadas questões familiares, mas mencioná-la aqui tiraria do eventual leitor a surpresa causada por sua revelação no livro.

Publicado em 2015, O ano em que vivi de literatura teve uma boa repercussão, mas não a que merecia. Pelo fato de retratar o meio literário de uma maneira um tanto ácida, talvez? Não sabemos. Mas ao menos um prêmio reconheceu o valor do livro, o Açorianos, que Scott venceu na categoria “Narrativa longa”, em 2016. Ironicamente, o Açorianos premia, com dinheiro, apenas a categoria “Livro do ano”, e o valor, dez mil reais, não tem o condão de mudar a vida de escritor algum.

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Rafael Rodrigues mantém o blog Paliativos, a revista eletrônica de contos Outros Ares e escreve eventualmente para o Huffington Post Brasil. É autor dos livros “O escritor premiado e outros contos” e “Mais um para a sua estante”, e um dos contistas da antologia “O livro branco – 19 contos inspirados em músicas dos Beatles + bonus track”. Mora em Feira de Santana, Bahia.