os corvos sempre estiveram aqui
com seus olhos de ódio
com seus grasnados de raiva e rancor
com seu mau agouro, sua treva, seu medo
e anseios por corpos torturados e mortos sob a luz do sol ainda
os corpos dos homens e das mulheres
livres
como nuvens
corpos cheios de vida
a quem os corvos sempre quiseram matar
consumir seu sangue
vampiros
têm medo da luz
e das manhãs
almas entregues
almas que fecharam os olhos
que têm olhos mas não veem
ouvidos mas não ouvem
que têm um coração mas que não sente
não se compadecem mais
com as dores humanas
com os gritos dos famintos
dos refugiados que fogem da morte, da guerra, da fome
os corvos sempre estiveram aqui
nesta terra amarela
como o trigal
mas nós não os víamos
nós não os queríamos ver nem reconhecer
não queríamos dizer que ao nosso lado dormiam
e da nossa tristeza e da nossa desgraça
se regozijavam
em seus ninhos penosos e feios como as noites sem rumo
não, não os queríamos ver
e agora no entanto nós os vemos
por todos os lados
em todos dias
voando sobre nossas cabeças
temerosas
ameaçando o bonito da praia
e o conforto das casas
com suas garras negras metálicas
apontadas
para os nossos rostos
seus olhos de fuzis
e suas vozes terríveis a gritar palavras de ordem
uma ordem que em si não é mais que violência
voam, voam os corvos pelo trigal
convencidos de que chegou a noite geral
de que não haverá amanhã
e reinará para sempre a cartilha do mal
pobres, pobres corvos
aves sem vida
sentinelas do exílio
e da sua própria perdição
esqueceram-se por um momento que não há noite que dure para sempre
que o início da madrugada mais escura
é já o prenúncio do sol que nascerá às seis da manhã
ofuscando todas as terras com seu clarão
pobres aves sem diligência
que trocam a paz por migalhas de pão
um abraço amigo pelo fígado do seu irmão
e antes que fujam e se escondam para sempre em seus cantos escuros
nas bocas dos lobos que os pariram
nós os incomodaremos
nós os espantaremos
com nossas palavras mais leves que o ar
com nossos cantos suaves
nossos sonhos
nossos sonhos
que vêm cheios de vida
que têm cheiro de mar.
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Ângelo Santiago, 30 anos, é poeta e amante de vinhos. Nasceu na Galiza, em Espanha, mas escolheu a América Latina, onde vive e colhe seus versos.