Mas havia quem considerasse
que a ascensão de Eusébio
fora demasiado lépida
para ser natural.
Se se dizia mercador,
ocultava assim o larápio,
o assassino e o salafrário.
Que em troca de sua alma
ensinara-lhe o mestre do mal
o esconderijo de gordas botijas
e o meio de chegar a elas
até atrás de cornijas,
e ainda o subterfúgio
para guindar de seu refúgio
o tesouro sepultado num açude
conhecido por da Prata até hoje,
sem ser arrastado deste mundo
pelo fantasma de Branca Dias,
a espectral sereia sem canto,
apenas silencioso encanto,
em vida uma cristã-nova
que zarpou para o Brasil
numa das primeiras levas,
senhora de muitas posses,
para alguns cruel e maleva.
Ainda segundo o raconto,
acusada plo Santo Ofício
de inveterado judaísmo,
atirara sua delicada baixela
e muitos outros objetos de prata,
nas águas insuspeitadamente fundas,
para não enriquecer com a fartura
que não podia mais ser sua
a já opulenta cúria.
Recusando-se a abjurar,
queimara viva lá em Portugal
mas sua abrasada assombração,
voando sobre o tétrico Atlântico,
retornara para o cativo tanque,
onde as feridas da memória
do tormento se fecharam:
tornara-se ninfa sinistra,
nem por isso destituída
de beleza de enfeitiço,
pois cobrara juventude.
Certa noite de plenilúnio,
dessas que em lugares ermos
e sem luz que ofereça concorrência,
parecem dias dum sol frio e argênteo,
tanto um homem que pescava traíras
tomando o cuidado de não procurar
o seu reflexo no espelho líquido
(não encontrá-lo seria presságio
duma morte próxima e difícil),
quanto um vigia da companhia
que abastecia a cidade anfíbia
com água daquele reservatório,
contavam ter visto em hora tardia
o bote tripulado por um rapagão
que remava de olhos vendados,
vestido com um terno branco,
um lenço vermelho no bolso,
arando do lago o calmo dorso,
quebrando a sua fixidez vítrea
com ondulações harmônicas,
e através de vitórias-régias
que se moviam à imagem
de moças de saia-balão
num grã salão de baile,
as flores estelares abertas,
brancas e quase fosfóreas.
Ao fundo do barco havia
um saco de couro amarrado
no qual o pescador supersticioso,
talvez de olhos mais treinados,
julgara perceber movimento.
Enquanto remava,
o homem se tremia;
à medida que avançava
parecia ganhar confiança
ao recitar em alto e bom som
os versos que seguem abaixo:
Branca Dias,
ó Branca Dias,
altiva e alva Branca Dias,
penetro agora as tuas águas,
onde rememoras tuas mágoas,
como se fosse a tua carne macia
que as labaredas consumiram
e levo embora a tua prataria
sem que me possas fazer nada,
pois meus olhos estão vendados
e para teu azar e minha sorte
eu nada temo da morte,
Branca Dias, ó Branca Dias,
Branca Dias obscura e pobre!
Ao terminar atingira
o meio do açude.
Ao absoluto espanto
dos dois espectadores
que não se entressabiam
por estarem em lados opostos,
ouviu-se nítida, depravada e rasgante
igual a um raio riscando a escuridão,
uma voz que perorava em resposta:
Eusébio Encarnado, ó Eusébio Encarnado,
trigueiro e intrépido Eusébio Encarnado,
pensa bem por onde incursionas;
conheço teus líquidos temores!
Acaso sabes nadar a contento
caso teu bote vire e te entorne
direto dentro do meu elemento?
Faz três séculos que estou calada,
mas para elogiar a tua sagacidade
e te advertir de tua imprudência
quebro agora o meu voto
e doravante falarei
a cada três séculos
no aniversário desta data
em que há três séculos passados
reneguei silenciosa todos os credos,
pois Jeová me lançara no degredo
no seio de minha pátria materna
e ao fogo feroz me abandonara:
desde então sou minha deidade,
esta senhora mal-pranteada
deste claro e prateado lago.
Comparaste a água à carne,
no que estais completamente certo,
mas não te esquece que para os imortais
matéria e espírito têm a mesma face:
esta cidade bebe a minha alma.
Com ela estou em toda parte.
Pesa bem tuas atitudes
pois basta que me desacates
para que sintas a ira da turba,
e a sociedade que te deu guarida
contra ti ruim e encapelada se insurja,
Eusébio Encarnado, ó Eusébio Encarnado,
Eusébio Encarnado ignóbil e cobarde!
Impassível, seu contendor redarguira:
Não estais em mim, ó Branca Dias,
que bebo da minha própria cisterna,
e se é verdade que tua chama é eterna
esse é somente o dom do Criador
concedido a suas criaturas,
dádiva de que usufruis e cuja fonte,
ao mesmo tempo, insensata, repudias,
qual um rio que não reconhece na chuva
a razão de sua longuíssima permanência,
como é aliás a chuva que Deus te envia
que te mantém alentada e nutrida;
ainda assim alimentas a soberbia,
sem perceber que apenas atiras
mais achas na fogueira da penitência.
Ele é que está em todas as tuas partes
e todas as tuas partes n’Ele circunscritas,
de Quem és apenas uma ínfima partícula,
não como uma gota do teu exíguo açude,
sequer como uma gota dos sete oceanos,
pois qualquer fragmento da infinitude
é infinitamente pequeno e essa diferença,
por ser maior que as próprias diferenças
e não ter ela própria magnitude,
não tem paralelo no que é finito.
Respondera-lhe a avantesma:
Tua lábia e tua argúcia, ó Eusébio,
só não se igualam a tua audácia,
mas não te esquece, não estremeci
nem diante da ameaça do Inferno
enquanto me lambia o fogo daqui,
igual ao daquela plaga sempiterna,
pois o fogo, ao contrário da água,
em nenhuma circunstância varia,
é um deus que se reverencia,
que devora e depois se mata
num holocausto dedicado a si
e ao contrário do que come,
por completo nunca se consome,
está sempre numa modesta vela
ou no interior de intrincada mata,
ardendo em seu próprio nome,
e foi com ele que aprendi,
na hora em que me devorava,
a não aceitar nenhuma senhoria,
e o segredo indenizou-me o suplício.
E eis aqui a periclitante pergunta
em que o circunlóquio redunda:
se estás tão seguro do favor
desse deus maior que tudo,
e por isso talvez igual a nada,
já que é uma contradição de termos,
pois fora do todo não há ermos
e se houvesse seria ele mesmo,
por que nãos sais desse escuro
e contemplas o revérbero de prata
que em minha pele se refrata?
Como se o antecipasse
e ansiasse com perfídia
por esse momento crucial,
desvencilhara-se da venda,
e de início deparara apenas
com a iridescente superfície
ainda suavemente oscilante,
atirando reflexos rendilhados
e bailarinos no costado do bote
e no seu magro rosto expectante.
Os únicos sons que se ouviam
eram o suave murmúrio
dessas pequenas ondas
assediando o madeirame,
o do barco rangendo,
dos remos nos encaixes.
Não havia nuvem nômade,
apenas um segundo horizonte
posposto ao costumeiro,
lanoso e escarpado,
de cumeeiras azulantes,
e a lua apenas um pouco
tombada para o seu poente,
estava alta no céu translúcido,
e seu reflexo na mata adjacente.
Receara que o convite de Branca
se resumisse a mero embuste,
e já abrira a boca em desafio
quando viu surgir não uma mão
ostentando proverbial Excalibur,
mas a cabeça graciosamente oval
de uma jovem vividamente pálida,
ao mesmo tempo imemorial e intata,
de cabelos e sobrancelhas tão negros
quanto a própria ausência de luz,
porém de olhos claros,
quem sabe azuis,
talvez grises,
olhos dessa cor
mutável da água.
O róseo dos lábios,
mais que as íris indecisas,
davam-lhe um aspecto tangível,
e vieram à tona em seguida
o pescoço comprido,
ombros garridos
e, ah, enleio,
os seios.
Seios apolíneos,
é tudo o que aqui diremos,
concordantes pomos da discórdia.
Nem é preciso dizer que em contato
com o ar anoitecido estavam hirtos.
Denunciava o ectoplasmático
da aparição apenas o fato
de que embora flutuasse,
mantinha-se à tona como
se pousasse os pés em algo.
Sem reparar nessa minúcia,
já Eusébio se inteiriçara,
mas foi salvo pelo medo,
seu vérmeo medo da água,
e não se jogou primeiro
para depois se arrepender.
Recordando seu desiderato,
ergueu diante dela o crucifixo
que trouxera no bolso do colete,
e declamou o seu ultimato:
Branca Dias, ó Branca Dias!
És e sempre serás uma vil judia,
mas em mostra de minha misericórdia
rogo a Deus que te poupe de infernais agonias
ainda que te prive das alegrias celestiais:
vai-te embora para o purgatório
pagar a pena dos teus dias!
E dizendo isso aspergiu
as gotas dum frasquinho.
O semblante de moçoila
fez-se de repente rígido,
seus olhos agora fitos
na odiada efígie.
Na água ato contínuo
borbulhas emergiram
e espocaram aqui e ali;
murcharam vitórias-régias,
as flores espetaculares caíram.
estrelas cadentes sem um brilho.
No espaço de dezenas de segundos,
a assombração envelheceu décadas,
sua pele encarquilhou-se depressa,
seus cabelos perderam a tintura,
surdindo também das axilas
e do entorno dos mamilos;
sob a linha d’água sumiram,
tanto que os seios caíram,
mas a tempo de ver-se ainda
um deles abrir-se em carne viva,
tal se repuxado por instrumento
destinado a prolongar tormentos.
Com as mãos há pouco apetecíveis
tentou encobrir o rosto desfigurado,
mas elas já se revelaram horríveis,
unhas sujas, longas, aguçadíssimas,
sendo que na esquerda três a partir
do mindinho estavam arrancadas.
Através de sua boca engelhada
viu-se a dentição precária,
e em seus olhos embaciados,
ocultos pelas pálpebras arriadas,
se formaram duas grossas lágrimas,
qual o veneno na presa inoculadora,
e ela aí rogou a sua última praga:
Eusébio Encarnado, ó Eusébio Encarnado,
Para sempre sejas tu desgraçado!
Se contra ti nada posso,
amaldiçoo a progênie:
que tua semente pereça
da mesma forma que essa
que condenaram por possessa!
A essa altura o açude efervescia,
desprendendo denso vapor.
Como o sebo de uma vela
a pele da velha derretia
em meio a um ricto de dor;
os cabelos se consumiam,
tudo isso numa infusão
do mais intolerável odor,
até que por fim a ex-ninfa
soltou o grito de banshee,
e o finório saqueador,
ficando sufocado e cego,
sentindo-se macerar no calor,
atirou-se ao chão do barco
e esperou que passasse.
Tarde o açude serenou,
apesar da neblina remanescida
capturando o luar em sua malha.
Eusébio ainda demorou um minuto
assimilando a validade de sua vitória.
Ainda segundo as duas testemunhas,
desamarrara então o saco de couro
e dele retirara ímpar criatura
identificada como ariranha
recém-saída da infância.
Parecia ser adestrada,
à vontade em seus braços,
sendo esse animal arisco
e se necessário agressivo,
notadamente conhecido
como onça d’água
ou lobo-do-rio.
Ao cabo de carinhos,
sussurros ao pé do ouvido,
soltou o bichinho longilíneo,
que balançou a longa cauda,
se pôs a nadar galhardamente
exibindo a simpática carranca
que sabia fazer demoníaca.
Sem solução de continuidade,
deu um mergulho mais decidido
e terá se passado uma eternidade,
ou três minutos bem distendidos,
antes que ela arfante retornasse
com um cálice entre as presas,
ocioso explicitar o material.
Eusébio examinou a peça,
afagou a cabeça da ajudante,
fazendo festinha na mancha
branca e complicada debaixo
do pescoço longo e possante,
que é a sua impressão digital,
nunca duas tendo sido iguais,
como as estrias de um tigre
ou como as pintas da onça,
mas colocando o artefato
no saco onde a trouxera.
De um saco menor,
atirou então uma piaba
que a inocente comparsa
liquidou em dois tempos.
Sucederam-se mergulhos,
e variadas recompensas.
Vieram à luz não apenas
talheres, copos, taças,
jarras, bandejas, castiçais,
as sinetas de chamar lacaios,
mas também coisas espantosas:
um cinto de castidade,
um florete floreado,
uma estrela de Davi
com pedra brancaleitosa
engastada no hexágono
e presa a um trancelim
uma ponteira da Torá
de intrincadíssima lavra
com a mãozinha de indicador
esticado na extremidade;
um shofar espiralado,
uma caixa de etrog
em forma de ovo,
um alto penico
e uma máscara,
tudo do metal almejado.
Por último veio uma menorá,
feito que a ariranha só lograra
devido à força extraordinária
e amor que devotava ao dono,
tanto que aí se pôs a boiar
de barriga e papo para cima,
os redondos olhos fechados,
imóvel a não ser por um ou outro
movimento do bigode sensível.
Só estremeceu ao ser alvejada,
mãozinhas mantendo postas
como a criança no caixão,
bala alojada nas costas.
Eusébio a recolheu
com vara apropriada
e esfolou com a prática
da época de esfolar cabras.
Jogou a pele no saco menor,
no maior alojara seu tesouro.
Os observadores consideraram
que era um momento oportuno
para se retirarem de cena.
Portanto ninguém viu
quando o ladrão remou de volta,
nem quando montou o fiel Monarca
e se afastou pela noite alabastrina,
levando consigo seu rico espólio.
Na manhã seguinte deram
com o bote no mato,
a superfície do açude
cheia de peixes mortos.
Até o acari, feio, cascudo,
que suga o lodo das pedras
e resiste vivo fora d’água
por mais de meia hora,
ali havia perecido.
O zumbido do moscardo,
ouvido a uma distância notável,
era grosso, opressivo e constante
como um gerador trabalhando.
Os indefectíveis urubus
traçavam círculos no azul
com compassos interiores.
A Companhia do Beberibe
retirou com alvos puçás
toda a massa flutuante
e a distribuiu à populaça
dando a isso a aparência
de um gesto de caridade.
Seguiu com o abastecimento
como se nada tivesse acontecido,
mas não só os que comeram os peixes
como os que beberam daquela água,
ou seja, milhares e milhares,
passaram muito mal,
inúmeros mortes de disenteria,
havendo quem a tanto atribuísse
a responsabilidade por uma epidemia
das muitas que grassavam no Recife.
O próprio reservatório enverdecera
e desprendia um tal fartum
como se fosse enorme cadáver.
Foi preciso sangrá-lo em sigilo,
e depois enchê-lo mais uma vez
com o ainda hígido Capibaribe.
Devido à lenda de Branca Dias,
já que as testemunhas ainda
não tinham aberto o bico,
houve intensa expectativa
enquanto as águas desciam.
Suportavam com abnegação
os funcionários da companhia
as moscas e aqueles insetinhos
que amam frutas apodrecidas
bem como frescas feridas,
e o fedor ainda intensificado
pelo mover-se do caldo repulsivo.
O achamento da ariranha esfolada:
ela içada, esbranquiçada e túrgida,
não parecia animal desse mundo
e a opinião mais propalada
era a de que se tratava
de criatura antinatural
de plagas infernais oriunda,
provavelmente coisa de macumba.
Por fim a lama apareceu com seus siris
que dalgum modo tinham sobrevivido,
as pinças levantadas em ameaça.
Funcionários se entreolharam
com uma incredulidade tardia
e constrangimento indisfarçável.
Havia tanto decepção quanto alívio,
uma porque algo de primitivo
e permeável achava possível
a verdade da lenda herdada,
o segundo porque outra parte
moderna e refratária temia
a mesma verdade realizada,
pois uma lenda que se confirma
revitaliza todas os outros mitos:
consigo ressuscita fantasmas,
engendra maus fogos-fátuos
na noite escura da alma,
desorganiza a cômoda
cosmologia de escritório,
estrelas enquadradas pela janela;
devolve ao semblante do universo
um caráter místico, inescrutável.
O engenheiro francês radicado
há muito na cidade tropical,
adaptado ao solo adotivo
como um pé de manga
ou uma touça de banana,
não cansava de se espantar
com a suscetibilidade da gente,
sua predisposição para o folclore,
a indomável mitomania congênita.
Mais do que coordenar a operação,
observava fascinado o espetáculo
de uma multidão em suspense
por uma estória que tinham ouvido
através de um longo rosário de avós.
Deu então uma chupada no charuto
e soltou dois jatos pelo nariz,
num sorriso nasal e de olhos,
quando o rebanho se pôs em marcha
para retornar a seus postos de trabalho.
Nisso, houve algo que fuzilou ao sol.
Algo prateado, indiscutivelmente.
Ergueu-se ali um burburinho
de perplexidade, assombro,
receio e até esperança.
Três peões com enxadas,
as calças arregaçadas até os joelhos,
desceram ao leito, puseram-se a cavar
e revelaram que o objeto era grande,
um espelho oval de corpo inteiro.
Estava intacto, sem arranhão.
A ariranha não o suportara?
Escapara-lhe ao escrutínio
por estar bem enterrado?
Então o sol ficou a pino
e o espelho, ao refleti-lo,
trincou de cima a baixo.
Através dos fragmentos,
revelou-se a existência
de algo no caixilho.
Os três felás hesitaram.
O engenheiro calçou botas,
pegou um pau à guisa de cajado
e avançou penosamente até lá.
Afastando inúmeras lascas,
encontrou um pergaminho
todo escrito em hebraico.
Estava bem conservado,
mas nem por isso inteligível
a quem ignorava a língua.
Enrolou-o com descaso,
socou-o num bolso e foi saindo,
seguido pelos que traziam o achado.
Pretendia mostrar o texto a um rabino,
mas o esqueceu no roldão dos afazeres,
e talvez até hoje mofe em alguma arca
ou o tenha deteriorado a enchente.
O fato é que começou a ter febre
ainda na semana seguinte
e veio a morrer pouco depois
meio a alucinações intermitentes.
A maioria dos presentes no tal dia
encontrou um destino semelhante,
os que tiveram as imagens refletidas
nos fragmentos do vidro ao partir-se,
segundo a teoria de um sobrevivente.
É claro que a classe dos sanitaristas
atribuía aquelas mortes aos miasmas
liberados pelo sangramento do açude
cujo lodo não via o sol havia muito,
e não a exprobrações do Talmude.
À medida que a versão do vigia
e do pescador se popularizou,
ganhou força a hipótese
da maldição da judia.
Como saldo das estripulias
veio a lume um folheto de feira,
desses que hoje chamam cordel,
A peleja de Eusébio Encarnado
com o fantasma de Branca Dias,
que fez muito sucesso na época
conquanto agora esteja esquecido.
Um dos glosadores mais acalorados,
homem de profusos cabelos brancos
e pouquíssimos dentes restantes,
sustentou na Torre de Bebel
que tudo não passava de artimanha
concertada entre o mascate e seu mestre.
Explicava-se assim a efervescência da água
pelo Diabo ter aumentado o fogo embaixo,
a conversa ilusória de purgatório
só pra engalobar a inimiga
e ela entregar o espírito,
mas fora direto pro inferno!
Tivesse ascendido ao paraíso
tinha virado tromba d’água,
não um simples redemunho!
Aquela água benta esparzida
era bochecho do Catingoso
e a cruz que fora imposta,
Eusébio segurara invertida!
Aclarava-se assim de quebra
a súbita e invulgar erudição
demonstrada pelo sibarita,
já que essa é cláusula certa
dos contratos de vend’alma
desde os tempos do medievo
ou de datas bem mais antigas.
Alguém objetou nessa ocasião
que Eusébio tinha seu negócio
não com o próprio Encardido,
mas com figura mais doméstica,
a do famigerado Boca-de-Ouro,
que muitos ali tinham visto
surgir na beira dos rios.
Contava-se à miúda
que em noites sem lua,
arredores da Cruz do Patrão,
com o chapéu panamá gotejante,
encharcado o elegante trajo branco,
a pele roxa e os siris chocalhando
dentro do seu corpo tumefacto,
encontrava-se com o iniciado
que o esperava com a cigarrilha
e acendia-a tão logo ele aparecia.
Depois de uma profunda tragada,
a figura dava um sorriso gozoso,
revelando à luz laranja da brasa
um rosto túmido, decomposto;
engastada na boca carcomida
trazia uma dentadura de ouro,
onde a cigarrilha se equilibrava.
“Cada um tem a Atená que merece”,
aparteara um bacharel numa mesa,
orgulhoso do saber enciclopédico.
Porém aquele mesmo velho exegeta
dos cabelos muitos e dentes poucos,
mal acreditando na ingenuidade,
obtusidade dos interlocutores,
os fez lembrar que em cada parte
o Demo se apresenta duma maneira,
e que no caso duma terra de afogados,
de uma terra que fora arrebatada da água,
nada mais natural que adotasse o disfarce
duma figura que assolava nossos pesadelos
e era mui assumida pelos nossos fantasmas.
Por acaso não era na tal Cruz do Patrão
que os negros adoravam Satanás?
Com isso o velho angariou
o posto de autoridade máxima
quando o assunto eram diabruras
naquelas intermináveis filosofadas
que se prolongavam pela noite úmida.
Havia outros pontos controvertidos,
por exemplo o verso em que Eusébio
fazia uma menção à própria cisterna,
levando a supor que àquela altura
habitava no fausto do sobrado,
prescindindo dos chafarizes,
não tendo sido a aquisição
das pratas de Branca Dias
primícias de sua carreira,
mas sim seu coroamento.
Para uns essa passagem
não era mais que um blefe
ou ainda alusão críptica
a beber diretamente do rio,
por não dispor de vinte réis
para comprar um balde vil,
o que situaria esse episódio
bem no início de sua trajetória.
Havia um entendimento isolado
de que o verso era uma interpolação
feita pelo já agora incógnito cordelista
apenas pelo motivo de que não resistira
à tentação de ostentar uma rima rica.
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João Paulo Parisio (Instagram / Site) é autor de Homens e outros animais fabulosos, Esculturas fluidas e Legião anônima. A Peleja do intrépido Eusébio Encarnado com o Fantasma de Branca Dias é o quinto canto de A Águia e o Fígado, um longo poema narrativo.