Se eu acho que Antônia se deixa enganar por ele, não sei. Não estou aqui para julgar ninguém, mas Antônia parece não ouvir a voz que lhe fala no íntimo, e que todas nós mulheres ouvimos quando algo não está indo muito bem. Ainda assim, eu não sou daquelas pessoas dementes que insistem em ajustar os sentimentos alheios àquilo que acreditam ser o jeito certo de existir nesse mundo. Antônia? Eu a vejo como uma daquelas jovens inaptas para se locomover. Um passo só é dado quando alguém o determina a ela. Por si mesma, não move nem a língua. Não serve. Essa jovem não serve, ela não consegue caminhar sozinha, precisa do ventre de outra para depositar qualquer fruto, não se envergonha de ser assim, mesmo porque não sabe que é assim. Apodrece sem saber que está apodrecendo. O seu melhor retrato? Uma imagem que a represente? Um cilindro de metal que brilha sem convicção e, por fim, não serve, é isso. Antônia não serve para nada. Não vou dizer a vocês que ela me aborrece, pois não é verdade, eu até que me divirto assistindo daqui as suas atrapalhadas. E me compadeço de sua estupidez.
Ela não sabe o que seu marido faz aos domingos, pois aos domingos a sua mãe exige que ela a sirva. Mas ela não serve para nada, eu já disse. A mãe dela ordena a sua presença e ela sai de casa e se dirige como uma máquina sem vontade própria até a casa da mãe. E acredita que a sua vida vai bem e que ele, o seu marido, o seu nome é Carlos, que ele a ama, e que ama o Expedito, não o santo, mas o cão, um vira-latinha bege todo simpático, o único que talvez tenha uma alma inocente nessa casa. Mas o Carlos não é capaz de amar, nem a ela, nem ao cão, nem a mim. Não fiquem aí me olhando com essa cara, não sou uma velha bisbilhoteira. Acontece que não é possível viver aqui e não ouvir e ver tudo o que se passa. Eu não me importo, afinal, ninguém aqui se importa comigo. Não estou me queixando. Também não sou uma velha chorosa que acha que está sendo maltratada, como essas velhas que não sabem a dignidade de morrer aos poucos, em silêncio. E não o culpo se ele às vezes se esquece do meu jantar. Quando eu era criança nós não comíamos todos os dias, agora é que virou esse luxo. Todos os dias, três refeições, isso lá é coisa de gente normal, não é, não. Só os ricos é que comem três vezes ao dia. Por isso eu compreendo se no jantar ninguém me dá o que comer. O que me incomoda mais é ela ser assim, tão tola e não reagir a nada. Isso me deixa tão nervosa que eu sou capaz de me levantar dessa cadeira e sair andando até ela e lhe dar um safanão e uns tapas na cara para ver se as coisas se reorganizam dentro daquele corpo insustentável. Se isso acontecesse, seria provável que vocês gritassem: “É um milagre, a velha voltou a andar!” Mas eu também não preciso de milagres. Pelo menos não para mim. Adoraria mesmo é que um milagre fizesse dela alguma coisa útil que não essa árvore seca. É isso o que ela é, uma árvore seca.
No dia em que ela se casou com ele, eu disse: esse casamento não dura uma semana. Já estamos aqui há dez anos e nada dela se parece com alguma coisa viva. Outro dia ela queria sair de casa e como ele havia trancado a porta e levado às chaves, ela ficou caminhando em direção à porta e batendo a cabeça no batente. Não conseguiu pegar um telefone, arrebentar a porta num chute ou simplesmente esperar. Eu disse a ela que ligasse pra ele. Ou pra polícia! Mas a sua única reação foi: Tá. Ela não consegue formar uma frase inteira, como: eu preciso ir ao banheiro, gostaria de sair de casa hoje, preciso comprar chinelos novos, estou com fome, vou cozinhar algo. E não venham com piedade para cima de mim. Essa jovem já fez todos os exames e nós sabemos que ela só é assim, desse jeito inútil, por um único motivo: ela escolheu não ser. E é por isso que ele pode tudo com ela. Ele faz dela sua escrava, não a leva nas festas, a deixa aqui nesta casa comigo, trancada. E quando ele tira férias, ela continua aqui comigo. Coitada da mamãe, ele diz, não pode ficar sozinha, ela não consegue andar. E quem irá dar a atenção e os cuidados de que ela necessita senão você, Antônia, minha querida. Você faz isso com tanto carinho. Ela responde: Tá. Eu digo, leve ela com você, meu filho, eu posso me virar sozinha. Na verdade eu digo isso, pois terei de cuidar de nós duas. Ela não se aguenta sem alguém. O melhor é que fosse como eu, sem força nas pernas para andar. Ela não dá um passo sem que alguém lhe diga o que fazer. A culpa por ser inútil talvez pesasse menos ou se justificasse. E ele não se sentiria mal por não levá-la a todos os lugares. Ela compreenderia. Talvez dissesse: Tá. Seria o melhor para todos. Mas eu estou aqui dizendo tudo isso na esperança de que vocês façam alguma coisa por essa moça, afinal vocês são anjos da morte e estão me levando. Sem a minha presença, ela vai ficar sem rumo. O que será de Antônia? Eu estou decidida e já vinha pedindo que me levassem faz algum tempo. Agradeço terem vindo. Mas, e Antônia? Eu sei que ela até está com boa saúde. Mas… Sei lá, sejam criativos, algum acidente doméstico, um escorregão no banheiro. Eletrocutada! É isso, ela pode morrer eletrocutada. Ela fica horas com aquele secador de cabelo, quem sabe um curto-circuito? Tenham piedade, deem a Antônia uma boa morte, por nosso senhor! Aquilo lá é só um corpo murcho, deixem que ela morra de vez. Não, esperem! Por favor, não podemos partir sem Antônia. O que será da pobrezinha? Imaginem ter de suportar aquele homem terrível que não me chama de mãe há mais de trinta anos, nem boa noite ele me diz, passa por mim como se passasse por uma poltrona abandonada no canto da sala. Como? Vocês são anjos, não são? E aquela mãe general que ela tem? Deixem que ela venha comigo. Pelo amor ao Criador! A eternidade sem Antônia não será um bom lugar para uma velha esquecida como eu. Por misericórdia, não deixem que eu morra sem Antônia.
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Marcelo Maluf é escritor e professor de criação literária. Mestre em Artes pela Unesp. Escreveu o livro de contos “Esquece tudo agora” (Terracota, 2012) e o infantil “As mil e uma histórias de Manuela” (Autêntica, 2013), entre outros. Em 2015, publicou o romance “A imensidão íntima dos carneiros” (Editora Reformatório), livro finalista do Prêmio da Associação Paulista de críticos de Arte (APCA, 2015), finalista do Prêmio Jabuti (2016) e Vencedor do Prêmio São Paulo de Literatura (2016), na categoria estreante com mais de 40 anos.