BUQUÊ DE PRESSÁGIOS – MARCELO MONTENEGRO

Contraplano

Algo ganiu no peito das formas;

vareta quebrada
de um guarda-chuva,

um cachorro
mancando na aurora.

Chave brigando
com a fechadura;

traduzindo, em
volta, o que só existe

de ir embora.

 

Três pensatos

1.
PENSO naquela única gota
gelada do chuveiro quente.
Nas ilíadas clandestinas
que a febre percorre
até virar suor. Penso nas caretas
que os músicos fazem
quando estão solando.
No meu pai me dizendo
que tudo isso aqui era mato.
Penso na imagem exata
de uma aurora indecisa.
Penso em calços de papelão
para pianos mancos.

2.
PENSO em alguém que, na manhã
do dia de sua morte, desiste
de usar a camisa que mais gosta,
preferindo guardá-la para uma festa
que terá na noite seguinte.

3.
PENSO em você, por exemplo,
largando o controle
remoto e dizendo —
do jeito mais lindo
do mundo — que adora
quando consegue pegar
um filme do começo.

 

Postal

Daqui a trinta anos, digamos,
que alguém leia este poema.
Todos os pequenos laços
que o ligam ao mundo
fora dele e à vida de um
poeta fudido entre milhões
de pessoas lugares motivos não estarão
mais aqui para socorrê-lo.
Daqui a trinta anos a coisa
será somente a coisa mesmo.
Uma cápsula amputada do tempo,
um bife arrancado do amor.

 

Lost in translation

Parar como se esquecesse de algo,
A estranha equação dos encontros,
Onde a máquina do mundo se evola,
Canções que não cabem no corpo?

Qual bissetriz ou tropeço de passos,
Lepras de acasos, ciscos de encanto,
A numeração raspada de um revólver,
Deus chegando em ponto morto?

 

Auréolas em latas de biscoito

Comprar jornal na esquina e na volta
conferir a caixa postal telefônica. Morder o
ponto do dente onde já se sabe que a dor
dói com exatidão. Guardar dinheiro antigo
na carteira. Olhar as lombadas dos livros
numa estante desconhecida à espera de
alguém. Errar as medidas do café fora de
casa. Estar perto de perceber alguma
coisa. Encantar-se com parques de
diversão desativados. Pisar de meia no
quintal molhado pela chuva de ontem.

 

Restos de estúdio

Cada cigarro fumado na madrugada fria do posto
de uma cidadezinha absurda qualquer
durante a parada do ônibus.
Quantas imagens apodrecidas
na garganta seca das descrições,
canções que não chegaram a tempo.

Quantos dentes pintados de preto
nos retratos sérios dos livros de história,
tanto amor que virou desespero.
Cada silêncio perdido no grito,
tantos cacos de vidro em cima dos muros,
como se eu mesmo os tivesse escrito.

Quantos versos criados a bordo e não anotados,
tanto rancor latejando
na mudez de socos não redigidos,
tanta fita cassete e as gargalhadas
de todos os loucos
espanando o sublime do mundo.
Quantas giletes cuspidas de um pulso,

tanto caderno novo começado,
quantas falas roubadas de amigos,
tantos pântanos não soletrados.
Quanta inocência colhida em varandas de abismos
que eu carrego comigo
como um tesouro afundado.

 

Buquê de presságios

De tudo, talvez, permaneça
o que significa. O que
não interessa. De tudo,
quem sabe, fique aquilo
que passa. Um gerânio
de aflição. Um gosto
de obturação na boca.
Você de cabelo molhado
saindo do banho.
Uma piada. Um provérbio.
Um buquê de presságios.
Sons de gotas na torneira da pia.
Tranqueiras líricas
na velha caixa de sapato.
De tudo, talvez, restem
bêbadas anotações
no guardanapo.
E aquela música linda
que nunca toca no rádio.

 

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Marcelo Montenegro (São Caetano do Sul, SP, 1971) é um dos principais nomes da nova poesia brasileira, autor de FORTE APACHE (Companhia das Letras, 2018), que além do inédito reúne também seus dois primeiros livros na íntegra – ORFANATO PORTÁTIL (2003) e GARAGEM LÍRICA (2012). Além de poeta, é roteirista e criador de séries de ficção para a TV (já escreveu para HBO, Netflix, GNT, Globo, Warner e Sony, dentre outros. Em parceria com o guitarrista Fabio Brum, gravou o CD TRANQUEIRAS LÍRICAS (2017), registro do espetáculo homônimo com o qual se apresenta desde 2005 dizendo seus poemas ao som de rock’n’roll, blues e jazz.

:: Todos os poemas integram FORTE APACHE (Companhia das Letras, 2018), que além do inédito – que dá nome ao conjunto – reúne também seus dois primeiros livros, que se encontravam esgotados, na íntegra: “Orfanato Portátil” (2003) e “Garagem Lírica” (2012).