Nas eleições de 1998, Leonel Brizola convenceu Lula a ir até São Borja para visitar o túmulo de Getúlio Vargas. “Dessa você não vai escapar, sapo barbudo”, ele disse, ou talvez não disse, mas vamos brincar com as possibilidades históricas e imaginar que ele tenha dito. Lula começou a rir e colocou a mão no ombro do seu futuro vice-presidente: “não tenho medo de defunto, companheiro”.
Lula, enquanto viajava a São Borja com Brizola, em um avião solitário, parado no ar, nem imaginava que venceria a eleição para presidente do Brasil em 2003, mas que entre erros e acertos, cairia na prisão e veria o seu partido se transformar em sinônimo de “bandidagem”. A sociedade começaria a odiar o PT por causa dos escândalos de corrupção dos seus governos e concretizaria este ódio na figura de um capitão reformado chamado Jair Bolsonaro, deputado obscuro que habitava o congresso nacional há mais de 30 anos.
Em 1998, Lula também nunca imaginaria que Bolsonaro presidiria o país a partir de 2018 com uma bolsa de colostomia no bucho, cagando efusivamente de emoção enquanto lia seu discurso de agradecimento, no qual dizia que o Brasil se transformaria em um país direito, seguro e sem comunistas, petistas e marginais. No decorrer dos anos seguintes, ficaria evidente que este Bolsonaro era um bobo da corte nas mãos do mercado financeiro, grandes empresários, igreja evangélica, agroboys, cantores sertanejos, esposas ricas entupidas de botox, maquiagem e uísque, maridos escrotos e agressivos, Edir Macedo, apresentadores de programas sensacionalistas e todos que bancaram sua candidatura.
Lula, enquanto observava o grande Brizola ao seu lado no avião, não conseguia ver ainda que no futuro, Bolsonaro instituiria uma lei através de decreto para a população localizar petistas e atirar neles. Quem matasse mais petistas ganharia uma redução no pagamento dos impostos. A lei se chamaria “Caça-Petistas”. O presidente Jair botaria o pau cinza na mesa – literalmente – e assinaria essa lei em meio a gargalhadas.
“Vou botar isso aqui no cu da petralhada, ok? Hahahaha…”
“Filhotes da ditadura”, diria Brizola, que já estaria morto nesses tempos bolsonaristas. Mesmo finado, Brizola é participante ativo desses tempos com sua convicção e voz forte. Ninguém o escuta – será? –, mas ele está presente.
Como vocês deixaram isso acontecer? O Lula que veio para reformar está sendo reformado? Preso? Mas como? Os pobres não têm lobby. Ninguém pede por eles, e pouca gente procura melhorar a vida daqueles que vivem à margem da sociedade. Nada mudou. O que vejo daqui são pobres comendo pobres. Canibalismo democrático. Uátsap? E esses pastores governando o país? Eles querem é estação de rádio e dinheiro. São adoradores dos bezerros de ouro. Lembre-se: divididos, seremos sempre degraus para a direita subir. Ou o fascismo subir. Alguém me escuta? Você colocou a igreja debaixo do braço para se eleger, Lula. Olha só no que deu. Tá vendo? O vencedor foi o inferno. Alguém me escuta? Não tem alto-falante no limbo.
Brizola, r.i.p 2004
No avião, que pousava no Rio Grande do Sul, a esperança reinava. Lula com o apoio de Brizola poderia ganhar do FHC. Quando chegaram ao cemitério de São Borja, Brizola pediu para os assessores ficarem na entrada. Ele e Lula foram caminhando até o encontro do ex-presidente Vargas. Essa breve caminhada foi simbólica, pois apesar do silêncio dos dois homens, havia uma potência ensurdecedora ao redor deles. Ambos alimentavam uma utopia possível, que com o tempo se concretizaria e tombaria, como toda utopia que desafia o status quo. Entretanto, naquele estante, eles sonhavam. E sonhar ainda era possível.
Quando chegaram ao túmulo, ficaram calados; até que Brizola deu alguns passos. Ajoelhou-se e começou a falar baixinho.
“Oi, Dr. Getúlio.”
As forças e os interesses contra o povo persistem.
Getúlio Vargas, r.i.p 1954.
Começou a ventar em São Borja. Um vento afiado e frio. Nuvens cobriram o azul do céu. Lula se contorceu e ficou olhando para Brizola com um semblante assustado.
“Esse aqui é o Luiz Inácio Lula da Silva.”
Amanhã sereis o governo.
Getúlio Vargas, r.i.p 1954.
O vento intensificou.
“Que porra…” Lula sussurrou.
Brizola segurou a emoção. Ele abriu um sorriso tímido e continuou a falar com o túmulo.
“Olha, Dr. Getúlio, aqui está um operário, aquilo que o senhor não foi nem eu fui.”
Próximo dali, escondido atrás das árvores que tremiam com a ventania, estava seu Chagas, o segurança do cemitério de São Borja. Ele observava aqueles dois homens históricos com certa emoção. Petista desde sempre, antigo sindicalista de raiz, Chagas não acreditava no que estava vendo.
Estou cansado. Tenho lutado mês a mês, dia a dia, hora a hora.
Getúlio Vargas, r.i.p 1954.
“Este operário é quem vai fazer o que a gente ia fazer.”
Brizola tocou no túmulo. A admiração em suas palavras era nítida.
Sem reação, Lula observava calado. Seu Chagas também ficou sem se mexer, impactado com o momento.
“Quer conversar com o Dr. Getúlio, Lula?”
Lula acordou do transe e disse que não com a cabeça.
Tenho lutado tanto…
Getúlio Vargas, r.i.p 1954.
Brizola deixou um buquê de flores no túmulo e se dirigiu até Lula, apertando o ombro do ex-operário.
“Grande, Getúlio…” Disse para si.
Lutei contra a espoliação do Brasil. Lutei contra a espoliação do povo. Tenho lutado de peito aberto. O ódio, as infâmias, a calúnia não abateram meu ânimo. Eu vos dei a minha vida.
Getúlio Vargas, r.i.p 1954.
Enquanto os dois homens voltavam para a entrada do cemitério, Lula pensava: “Brizola transcendeu a minha compreensão. Que grande homem!”.
Seu Chagas tomou coragem e antes deles saírem gritou “meu presidente!” para Lula, que riu e acenou ao homem, respondendo categoricamente: “estamos juntos, companheiro”. Chagas riu e disse: “sempre!”. Brizola acenou também para o segurança e falou a Lula: “é disso que tô falando, Lula. É disso”.
Os filhotes da ditadura persistem. Sabia? Até aqui.
Brizola, r.i.p 2004
A eleição de 1998 não deu certo: FHC venceu com 53%. Mas o futuro aguardava Luís Inácio Lula da Silva.
Não seria fascinante fazer essa elite engolir o Lula, esse sapo barbudo.
Brizola, r.i.p 2004
A elite engoliu o sapo barbudo, faturou em cima do seu governo, cresceu, desenvolveu, e quando teve a oportunidade, o enxotou. Aproveitaram-se das falhas do partido dos trabalhadores e implantaram aquilo que acreditavam ser melhor: lucro, leis trabalhistas flexíveis, mão de obra barata e alguém para “botar ordem” nos ativismos. A elite do país botou um túmulo em cima de tudo o que o partido representava, enfiando uma bota de milico na boca do progressismo.
“O deus mercado salva”, repetiam em uníssono.
O pacto que a sociedade fez com Bolsonaro para chutar o PT da vida pública teve um preço: a democracia, que morreu com uma facada no estômago.
Seu Chagas, em 2018, apoiou Bolsonaro. Assim como uma fatia considerável do país; isso de extrema-direita, esquerda, centro, fascismo, não fazia sentido para Chagas, que queria trabalhar e fim de papo. Movido por correntes virtuais, informações desinformadas, Jornal Nacional e conversas de praça, seu Chagas logo percebeu que o PT de outrora mudou. Aquele grande homem que ele conheceu no cemitério de São Borja não era mais o mesmo. Lula se tornou um bandido que quebrou o país, fudeu com tudo, destruiu seu povo etc. A verdade não existia e no lugar dela vinha o telejornal noturno metralhando o ex-presidente, fazendo com que seu Chagas ficasse triste e dissesse “alguém precisa botar ordem na casa”. Esse alguém era Jair Bolsonaro. “Não concordo com tudo”, dizia para os amigos no boteco, “mas o caba vai dar uma limpeza nisso aí”. Como um bom cristão, seu Chagas sabia que quando erramos muito é necessário receber um castigo, e o castigo do Brasil era Jair Bolsonaro, um homem que respeitava Deus – acima de todos – e que agiria feito um trovão da redenção, limpando o país dos seus males.
O trovão atingiu o próprio pé do Brasil.
Bolsonaro é o beijo da morte.
Brizola, r.i.p 2004.
Na prisão, resistindo aos tempos bolsonaristas, Lula caiu numa depressão e foi diagnosticado com câncer. Começou a escutar os mortos políticos do Brasil, delirando em febre e atormentado pelas vozes dos defuntos que residem nos livros de história. No Novo Brasil – o país mudou o nome –, todos desejam a morte de Lula na prisão e bolões de quando ele morreria se espalharam feito peste. Danilo Gentili, em seu programa diário chamado “Vaza vermelho!”, começou a fazer uma contagem regressiva. “É hoje ou não é? 10, 9, 8, 7…” O humor sórdido tornou-se padrão. Vamos rir da desgraça. Sejamos fascistas bem-humorados, dizem. Você não tem senso de humor?
Viva a liberdade.
Os mortos não deixavam de falar no ouvido do ex-presidente. Escutava de Dom Pedro a Getúlio Vargas, Médici, Juscelino Kubitschek, João Goulart, Brizola, Enéas, Tancredo Neves… Dos defuntos, aquela que mais falava era a democracia. Gritava “por quê?” e Luiz Inácio respondia “sei lá, sei lá!”, e os guardas de Curitiba riam, falando que o ex-presidente estava enlouquecendo. “O câncer dele é na cabeça, é?” A democracia se tornou um fantasma, assombrando este país diariamente. Hoje, ser brasileiro é visto com horror pelas pessoas ao redor do mundo. O Novo Brasil é sozinho, isolado, rasteja sobre sua própria alienação e reinventa a história: o golpe de 64 foi apagado dos livros, assim como as conquistas do governo de Lula e Dilma. As crianças agora nascem com cabeças deformadas, a lá Chernobyl, e a partir da sétima série elas aprendem a atirar, pois matar petista é a única forma de diversão possível para este país morto e fissurado em Duty Free. Aos 18 anos, tatuam “Deus acima de todos” na nuca. Aos 22, precisam fazer parte de alguma igreja evangélica.
Um país de homens de bem, religiosos e armados.
No Novo Brasil, muitas pessoas começaram a morrer misteriosamente enquanto dormiam. Apesar dos furos de bala nesses corpos, as causas eram sempre “naturais”. Dormir se tornou perigoso.
A trilha sonora desta insanidade à brasileira é do Eduardo Costa, Ministro da Cultura.
“Quando o petista chefe vai morrer? Apostem aqui.”
Na televisão, os jornalistas dizem que está tudo bem. Voltem a curtir a vida: está tudo em paz. Economia vibrante. Empregos. Investimento. Dólar baixo. Etc. Tá tudo bacana. Mas quando é que ele vai morrer, hein?
Serei como um cavalo inglês: só vou morrer na cancha.
Brizola, r.i.p 2004
Lula bateu no peito, desligou a TV e voltou a dormir.
“Serei como um cavalo inglês: só vou morrer na cancha.”
Os oito guardas da prisão de Curitiba onde está Lula sonham com tempestades e sapos definhando nos becos do Novo Brasil, um país que nunca dorme com medo de acordar com uma bala alojada na testa. Os próprios guardas não sabem se vão acordar vivos, mas dormem porque ficaram exaustos de tanto rir de memes comunistas. Dormem, acima de tudo, porque é o que restou e porque estão andando na linha. “Não somos transgressores nem petistas”, repetem sem parar em seus sonhos intranquilos e compartilhados.
O amanhecer é o momento mais bonito do dia, mas, quando ele chega, encontra a maioria das pessoas dormindo.
Brizola, r.i.p 2004
Estou cansado. Escolho este meio de estar sempre convosco. Sigo o destino que me é imposto. Livre. Sacrifício. Infâmias. Financeiros. Trabalhador. Forças. Espoliação. 500%. Congresso. História. Luta. Eternidade. Vida. Resista. Silêncio.
Getúlio Vargas, r.i.p 1954.
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Bruno Ribeiro nasceu em 1989, um mineiro radicado na Paraíba. Escritor, tradutor e roteirista. Autor do livro de contos “Arranhando Paredes” (2014) traduzido para o espanhol pela editora argentina Outsider e do romance “Febre de Enxofre” (2016), eleito um dos melhores livros do ano pelo site LiteraturaBr, Literatamy e pelo crítico literário Alfredo Monte. Mestre em Escrita Criativa pela Universidad Nacional de Tres de Febrero (UNTREF), editor da Revista Sexus, foi um dos vencedores do concurso Brasil em Prosa, promovido pelo jornal O Globo e pela Amazon. O seu novo romance Glitter (2018) foi pré-selecionado ao Prêmio Sesc de Literatura 2016 e finalista da 1° edição do Prêmio Kindle. Edita o blog Bruno Ribeiro