CINE-MONSTRO – CARLOS EDUARDO PEREIRA

O filme é sobre um cara. Um cara e sua família. Com um roteiro desses que embaralham tudo: começa com o que aconteceu por último, termina com o que veio primeiro. E vice-versa. Pra facilitar eu coloco os acontecimentos em seus devidos lugares, numa ordem cronológica. O nome desse cara é Adão. Mas a desgraça começa bem antes. Adão tinha um pai, e uma mãe. E, claro, teve um avô, e uma avó. O avô era alcoólatra. (Ou alcoólico, é assim que se diz hoje em dia. A denominação nem é importante, o fato é que o velho gostava de beber. Beber muito.) Sobre a avó não se sabe muita coisa, apenas que o nome era Helen, e Helen amava trabalhar em seu jardim. Voltando ao avô, ele passava as tardes tomando seus drinques: Rob Roy, Caipivodka, Margarita, Caipisaquê, Manhattan, Caipirinha Brasileira, Whisky Sour, Cosmopolitan. O pai do Adão já tinha nascido, não passava de um bebezinho ainda. O nome do pai era Téo. O Téo cresceu e arrumou uma namorada, a Janine, que depois tornou-se esposa. É aí que o filme começa pra valer: enquanto Téo e Janine ainda são namorados.

O Téo tinha uns pesadelos, quase toda noite. Alguma coisa com sangue, com gritos, corridas pelado na rua. A Janine é o tipo de mulher chata, que vivia enchendo os colhões do cretino do Téo. Era pra ele ter dado um belo chute no traseiro da Janine, era pra ele ter botado a vagabunda pra correr, mas não, continuou com ela, brigando e terminando e depois voltando, até casar. Casaram porque ela engravidou. A Janine está grávida, é o Adão que está pra chegar. Está grávida e o Téo não tomou providência nenhuma. Ele não fez nada. Nada além de frequentar umas reuniões de grupos-de-mútua-ajuda-que-não-servem-pra-porra-nenhuma. Ele não fez nada.

E tem o Adão. Adão tem um colega, um vizinho, adolescente como ele. Um desses garotos sem nada na cabeça. Podia ler um livro ou, sei lá, rezar um pai nosso, mas ele também não fazia nada. Esse colega, o Fred (que até costumava chamar o Adão de Boiolla, mas isso foi antes), o Fred passa boa parte do filme impressionado com umas coisinhas que o Adão fez com o pai. Resumindo aqui, ainda pra facilitar, o Téo foi parar numa caixa de papelão. Partes dele, quero dizer. O restante acabou num berço: um tronco vivo (um pedaço de gente, sem os braços, sem as pernas), um troco vivo, acomodado num berço, comendo macarrão cortado a faca. Tudo isso embalado por aquela música velha, que fala de gotas de chuva na cabeça. Essa é a trilha sonora: gotas de chuva caindo e caindo na cabeça de alguém.

Nesse momento surgem outros personagens, todos viciados. Com seus problemas muito sérios, e suas dificuldades em lidar com esses problemas muito sérios. Nenhuma novidade: todos nós temos problemas muito sérios, e todos nós temos dificuldades em lidar com esses problemas muito sérios. Aparece o Jô, que tem uma ideia incrível pra um filme – um filme dentro do filme, entendeu? –; aparece a Pat, namorada do Jô; o Gary Oldman; a Uma Thurman (ou a Pamela Anderson); um anão simpático, que lá pelas tantas explode; uma estrada que vira um rio; peixes voadores; lésbicas selvagens; e a vitrola que toca sem parar, de novo e de novo (raindrops keep falling on my head); aparece o Andreotti, que acha que o filme é uma merda, mas merda vende bem; o roteirista judeu Isaac, que bebe feito um camelo (um dos babacas que a gente paga pra escrever, pra fazer esse trabalho de corno que qualquer um pode fazer com o pé nas costas); aparece a Denise (que tem esse lance de ir ao banheiro toda hora pra fazer xixi e, cara, ou essa mulher tem a bexiga do tamanho de uma lêndea ou temos uma pessoa por aqui com sérios problemas com a cocaína, não é mesmo?); aparece uma festa, daquelas que têm o diabo na discotecagem; aparece de novo o anão, só que agora ele não é tão simpático; aparece o Giancarlo Dominguez. O Jô acaba recaindo: Quem é que eu vou ser senão eu mesmo? Nenhuma novidade também: todos nós, pode ser mais cedo ou pode ser agora, todos nós acabamos recaindo, não é verdade? E aparece o Ron, e aparece o David, e aparece a Tina. Nenhuma novidade.

E aparece o Téo. Aquele que não consegue não entediar todo mundo a cada vez que abre a boca. Um cara especial. “Vocês são patéticos. Por que eu não consigo calar a minha boca? Como é que uma pessoa pode viver assim? Se humilhando… em público… tudo errado… se pelo menos desse pra culpar alguém, ia ser tão mais fácil… até quando eu ainda vou ter que viver essa vida miserável?” Corta pra Janine. Ela quer engravidar. Ele não. Eles vão ao cinema. Eles brigam. Eles fazem as pazes. Ela engravida. Eles se casam. THE END. Em resumo, um grande filme. Legítimo representante do cinema-verdade.

Como se sabe, o filme era sobre um cara. Um cara e sua família. E amigos! Tinha muitos amigos esse cara da telona. Mas, antes de tudo, o escuro. No princípio de tudo, sempre vem a escuridão. E o silêncio. Antes do primeiro amanhecer, quando não existiam santos porque não existiam pecados pra que os santos fossem necessários. O silêncio foi rompido pela voz que sussurrava. Era dele a voz: do Adão. O cara que preferia ser oceano a ser copo d’água, que preferia ser incêndio a ser fogareiro, que preferia ser dilúvio a ser represa. O cara que gostava de homens que se afogam, de florestas queimadas e de cidades de dez pessoas. E de blecautes, de dias curtos, de noites longas, de egoísmo exacerbado.

Aí apareceu uma mulher, e o namorado dessa mulher. O homem vinha tendo uns sonhos maus, umas bobagens. À gentil preocupação da namorada, ele respondia primeiro com sarcasmo, depois com grosseria. Sujeito estúpido, esse namorado. Bem, de qualquer modo eles brigavam, era isso que eles faziam. O amor na sua essência.

Aí apareceu um garoto. Um bostinha, sem nada na cabeça. Nada, até que uma coisa acontece. E, olha, foi realmente um acontecimento. Seus vizinhos resolveram mostrar pro mundo do que eles de fato eram feitos, do que quase todas as pessoas de fato são feitas. Esse garoto ficou obcecado com aquilo. Pode-se dizer que ele arrumou o que fazer na vida, uma ocupação. Mas isso foi depois. Antes disso veio a coisa, o tal acontecimento. Tenho certeza de que você se lembra bem, mas não custa reforçar a mensagem. Essa coisa envolvia uma caixa, das grandes, de papelão. Envolvia também um berço, um maçarico, e uma vitrola. Tenho vontade de contar um pouco mais, só um pouquinho. O papai foi parar no porão, dentro da caixa. Não inteiro, mas suas partes. O papai mesmo, quero dizer, o tronco do papai (ainda vivo, detalhe importante) e a cabeça, esse pedaço foi pro berço. Não foi assim? E comendo macarrão! Macarrão cortado a faca. Uma sequência memorável, digna de entrar pra história da sétima arte. Uma beleza. E tinha também a vitrola, eu dizia, ela tocava o tempo todo, no modo repeat, volume no máximo, aquela musiquinha insuportável de um outro filme, antigo, que falava de gotas de chuva e tudo mais, caindo e caindo na cabeça de alguém.

Aí apareceu o pai do namorado. E a mãe: a mãe do namorado. O pai do namorado gostava de beber. E a mãe, de jardinagem. Ela tinha umas luvas amarelas, vivia com as suas luvas amarelas de jardinagem, o tempo todo. Isso enquanto o namorado (era um bebezinho ainda, o namorado, um lindo e inocente bebezinho), enquanto isso ele chorava. A mãe jardinava, o pai bebia, e o namorado chorava. Eles sentiam tudo.

Aí apareceu o viciado. Depois viriam outros viciados, mas vou me concentrar nesse aqui, como um símbolo de todos os viciados, um exemplo. Ele estava sentado numa cadeira e escancarava sua vidinha pra um grupo de outros desgraçados. Escancarava. Falou de seu passado com as drogas todas, desde os catorze (menos solvente de tinta, porque, cara, ele quase ficou cego uma vez com solvente de tinta, por isso optou por todo o resto). Ele dizia que tinha parado com toda aquela merda, mas eu tenho minhas dúvidas. Sei lá, não parecia. E falava de uma namorada, que antes tinha sido garota de programa; e de um dos rins, que havia feito a passagem; e de um pai, com quem reatou certos laços; e de umas rezas, que implorava de vez em quando pra alguém-de-lá-de-cima. Um belo dia, acordou com a ideia pronta de um roteiro – um filme dentro do filme, entendeu? –, e começou a detalhar esse roteiro, que era uma merda, mas merda vende bem. Contou sobre o Gary Oldman e uma mulher misteriosa (ou duas, duas mulheres misteriosas), que se esbarraram de repente e se deram conta de que talvez já se conhecessem, uma história de amor. E toma fuga, perseguição, becos sem saída, um anão simpático que explode, carros que viram peixes, milagres, vontade de acabar com tudo.

Aí apareceu a secretária. Ou a assistente-anotadora do judeu camarada que era pago pra escrever umas coisas absurdas, e fazer algum dinheiro com essas coisas absurdas. Ela tinha a bexiga do tamanho de uma lêndea, ou qualquer coisa do tipo. Aí apareceu a biba que chorava o tempo todo. E a vagabunda xingadora, que odiava a própria mãe. E, de novo, o namorado, se entendendo como idiota e os outros como patéticos. E o mediador de conflitos, ele mesmo confuso como o diabo. E aí apareceu o copo de vinho. Quem é que eu vou ser senão eu mesmo? E, de novo, a namorada, ovulando feito uma louca. E o Adão. E uma pedra no rim do namorado. THE END. Em resumo, um grande filme. Legítimo representante do cinema-verdade.

 

_______________________
Carlos Eduardo Pereira nasceu no Rio de Janeiro, em fevereiro de 1973. Cursou História na UFRJ e Letras na PUC-Rio, na habilitação Formação do Escritor. Lançou, em novembro de 2017, seu primeiro romance, Enquanto os dentes, pela editora Todavia.