COMIDA DE GRAÇA – HEYK PIMENTA

Se eu tirasse os sapatos antes não alteraria o pronunciamento. Eu ainda não tinha tirado os sapatos. A TV tava ligada, a porcaria tava na metade. Votariam na semana seguinte a escravidão. Lei da escravidão. Usuários de filmes, séries e música deveriam restituir aos grandes estúdios, gravadoras, editoras o valor devido por acessarem ou baixarem conteúdos e produtos ilegalmente. O procedimento havia sido simples. A partir do rastreamento de IPs e cruzamento de dados de contas em redes sociais e um scan incompleto, assumiam, das mensagens privadas, cada um de nós havia recebido um e-mail com um boleto anexo, um valor incrível. No meu caso tinha 6 dígitos e sei que me saí muito bem dessa.

Parlamentares daqui e de outras colônias defendiam o perdão. O lobby queria o valor integral, retroativo, desde o começo da internet. Especialistas faziam cálculos nas rádios. Mesmo uma criança de 10 anos morreria sem quitar as parcelas de juro mínimo, aplicado, nesse caso, dado o desconhecimento que as crianças têm da legislação. Ninguém podia pagar. Ninguém podia pagar.

Conglomerados, investidores, sedes das grandes empresas davam entrevistas explicando as saídas humanas para a situação, mas diziam não encontrar medidas não onerosas.

O menos pior, o defendido pelos moderados, era dedicarmos uma carga horária semanal a atividades de interesse dos estúdios. O lobby afirmava ser insuficiente. Nenhum dos tubarões do mercado fonográfico se pronunciava. As notas publicadas queriam que tudo terminasse bem para todos. Os estúdios não estavam interessados em toda a população mundial, que fariam eles? Nos mandariam fazer as unhas dos executivos? O que entendíamos daquele mercado?

A Organização Mundial do Comércio foi à imprensa propor que os países submetidos à varredura fizessem disso uma moeda. A dívida ou partes dela poderia ser comprada por terceiros e empresas. As pessoas por sua vez passariam a dever a esses novos players. Dever milhões, dezenas de milhões em alguns casos.

Se a lei passasse, nada supérfluo poderia ser adquirido pelos escravos, como já éramos todos chamamos. Apenas gastos com alimentação e moradia poderiam ser justificados e não incorreriam em multa. Mas àqueles cuja dívida foi comprada, uma benesse, trabalhariam até que pagassem a dívida, todo o seu rendimento seria direcionado às parcelas, porém seus novos credores se comprometiam em garantir-lhes comida e teto. Cerco fechado. Todos sabemos que trabalharemos até a morte. Todos sabemos que ninguém auditará essas contas.

Novamente o caso era simples, os países que não regulamentassem a compra das dívidas dos escravos, teriam que assumi-lo como um ato de guerra. Nicarágua, Filipinas, incrivelmente o Irã, e outros depois vieram, aos poucos, criavam leis para tornar, era a palavra mais dita, humana a situação. Mas nenhum país quis correr o risco. Ministros de estado, servidores de alto escalão eram poupados, a justificativa era manter os países em pé. Os demais servidores faziam jornadas duplas, não podiam deixar seus cargos. Todo o resto da população era avisado por e-mail onde seria seu novo posto agora. As famílias divididas, os alojamentos cada vez mais insalubres. Partiam para o último trajeto ou para pôr a corda, como era dito.

No Brasil alguns estão fugindo pro Caparaó, pro Pantanal, o Cerrado. As Forças Armadas já assumem que teremos no mínimo uma guerra para reconduzir os cidadãos aos seus novos postos na sociedade. As ruas estão oleosas. Estamos todos no corredor da morte, diz o âncora da Bandnews.

_______________________
Heyk Pimenta é poeta, mora no Rio de Janeiro e ganha dinheiro como professor do ensino básico. Vem de uma família rural da Zona da Mata Mineira. Procura editora para lançar seu quarto livro de poemas Se te amarrarem na estrada, de que esse texto, publicado pela primeira vez aqui na revista Vício Velho é integrante.