DÍA DE LOS MUERTOS: HOY ES MAÑANA – MARIANA BASÍLIO

Varrer os vermelhos —

Varrer as estranhas —

Varrer os presentes

Na morte presente.

O pensador e filósofo chinês Confúcio (551 a.C. – 479 a.C.) tem uma célebre passagem que diz “Para quê preocuparmo-nos com a morte? A vida tem tantos problemas que temos de resolver primeiro.” Não parece o caso quando pensamos em datas e celebrações sobre a morte e os seus mortos, comumente e historicamente construídas durante os milênios da humanidade. A mais famosa (ou curiosa) delas acontece no México: o chamado Dia dos Mortos. Nessa celebração, os antepassados são convidados a participar com os vivos, através de oferendas representadas com bebidas e doces (muitos de seus favoritos em vida). Festa milenar, é atualmente considerada patrimônio cultural mundial. Um dos poemas mais conhecidos de Vinicius de Moraes (1913 – 1980) se chama Poética, e talvez encabece com proeza o clímax desse tipo de celebração: “Nasço amanhã / Ando onde há espaço: / – Meu tempo é quando.”

Mas, o que, afinal, significa esse quando? Talvez a premissa seja uma palavra nomeada como atemporalidade. Partir ou permanecer se convergem como maneiras essenciais da existência humana. Afinal, morrer todos morreremos, seja de morte escolhida ou de morte morrida. Como vivos, o dever seja (talvez) nos proteger dessa condição, e ainda resistir, mesmo que de maneira hesitante. William Shakespeare (1564 – 1616) dá o tom da intempestividade dessa reflexão na peça Ricardo II: “é pela morte derrotar a morte, mas temer e morrer é fazer-lhe homenagem com um sopro servil.”

Em todo início de diálogo ou prece sobre a morte, há quem se liberte, há quem se condene – pela morte do dia, do ontem, do morto, do seu próprio corpo. E assim como imaginava Anaïs Nin (1903 – 1977): “O amor nunca morre de morte natural”. A morte acontece, fatal, onde há corpo, onde só a palavra inflama a interpretação do que é óbito.

Pelas ruas das cidades mexicanas entre os dias 1 e 2 de novembro observam-se corpus se completando de memória entre visitantes inominados que caminham ao redor da altíssima La Catrina, ou La Catrina de los toletes – anfitriã que como uma medusa parece condicionar a fila dos passantes e dos altares.  Uma espécie de monumento que agiganta à chegada dos convidados (mortos). Catrina vem do termo Catrín, que significa bem vestido, mas, muito antes, essa figura era conhecida como la flaca ou la muerte em sua primeira versão – Calavera Garbancera – figura gravada em metal por José Guadalupe Posada (1852 – 1913). Posteriormente, Diego Rivera (1886 – 1957) a vestiu e incorporou em seus murais, renomeando a caveira como La Catrina: “Ela vira a cabeça / para respirar o ar da manhã / o abril brilhante em sua face pálida” (William Carlos Williams [1883 – 1963]). La Catrina significou também uma forma de crítica social à classe política durante governos como os de Benito Juárez (1806 – 1872), Sebastián Lerdo de Tejada (1823 – 1889) e Porfirio Díaz (1830 – 1915), representando além da morte a miséria, a violência e a hipocrisia da sociedade mexicana.

Ao redor dessa célebre anfitriã, avistamos papéis picotando sobrevoando cabelos, costas e sorrisos, entre imagens que se movimentam com o vento, simbolizando a passagem dos finados pelo local. Pai, mãe, titia, irmão doente, a vizinha, o maldito político, o pobre cachorrinho, todos são e podem adiante ser presentes. Há ternura e música fluida pelos arredores. A felicidade se parece ali como um cristal disposto no centro solar.

Com a água das mãos e das mesas que permanecem à disposição dos defuntos, a sede é etérea. Há também frutas, representando a terra que tanto pisamos e da qual tanto exigimos. Para Jorge Luis Borges (1899 – 1986) “A esperança é o mais sórdido dos sentimentos”, e além da morte, nos usa “incessantemente”. Talvez este seja o porquê do tempo ser apenas uma convenção.

Entre as oferendas da celebração, uma das mais curiosas é o chamado pão de morto: quitute feito de raspas de laranja e erva-doce com enfeite de caveiras. Há competições pelos melhores pedaços e receitas. Ao lado do pão de morto, se vê no caminho mais doces de abóbora, inúmeras frutas, mescal, tequila e sal. Bocas de bebês, crianças, jovens, adultos e crianças passeiam e dançam tragando fumaças, engolindo muita saliva e novas palavras – são bocas que representam e clamam pelos entes e pela mística de uma festa infinda. Cecília Meireles (1901 – 1964) já versava décadas antes: ‘[…] Que morrerás por idades imensas. /Até não teres medo de morrer’’. Até não podermos acabar, acabaremos.

Surgida no nono mês do calendário solar asteca, o dia dos mortos surgiu há três mil anos. Na era pré-hispânica conservavam os crânios como troféus. Os mortos eram a superação do medo, da angústia, do dilema. Mas não é só no México que se exaltam os mortos. Mesmo aqui, no Dia de Finados, flores se acumulam com velas e lágrimas pelos túmulos – no Brasil a melancolia é a bossa nova dos partidos. Como cantava Cartola (1908 – 1980): “Deixe-me ir / Preciso andar/ Vou por aí a procurar / Rir pra não chorar”.

Para os guatemaltecos, o Dia dos Mortos é marcado pela construção de pipas gigantes, com rituais que antigamente celebravam a morte e o renascimento. O voo da vida seria a morte? A partida? Para Miguel de Cervantes (1547 – 1616) “Até a morte, tudo é vida”.

Outra boa recordação é El Dia de las ñatitas (Dia das Caveiras), um festival celebrado em La Paz, Bolívia, todo dia 8 de novembro. Indígenas andinos tinham o costume de partilhar os ossos de seus antepassados no terceiro ano após o sepultamento – como um tríptico da passagem. Atualmente só caveiras são utilizadas.  Nas Filipinas, o feriado é chamado Araw ng mga Patay (Dia dos Mortos), Todos los Santos ou Undas, e é feito de forma mais íntima, como uma reunião familiar. Os túmulos são limpos ou repintados, velas são acesas e flores são entregues aos passantes. No Japão, há o Bon Odori (em japonês Obon お盆), feriado budista em honra dos ancestrais. Durante o feriado nepalês Gai Jatra (festival da vaca), toda família que tenha perdido um membro recentemente faz uma construção de bambus, panos, papéis decorativos e retratos, chamados de gai. É um carnaval das avessas, e da possibilidade de união com o que não se poderia reivindicar com exatidão.

A morte é a temulência do amor: ama-se porque se pode perder (e se vai perder), cedo ou tarde. Viver e celebrar nossas perdas ou essas memórias é uma proposição tão certeira como imaginar que a história humana se constitui de alastrar o fogo perante o frio.

Na festa mexicana, papéis picotados ainda se encaracolam pelos cabelos, e sobem como balões de hélio. O cheiro da esquina é feito de taco, limão, melancia. Há pedaços de doces picados e pisados, gente que tromba e dança. Ao fundo, uma mãe parece chorar a possível partida do filho (seu rostinho de seis-sete anos está impresso na camiseta). Ela se senta, só, e devagar, olhando pelas nuvens. Em sua frente há meninos parecidos caminhando com seus pares. Papéis picotados de pipa, de seda, cores de neon. De repente, ela se levanta e come um doce desembrulhado, algo como uma maria-mole brasileira. Sorri. Lágrimas são hoje purpurina. Cintilam os elos, cobrindo as mágoas. É, enfim, dia dos mortos: “O segredo do amor é maior do que o segredo da morte” (Oscar Wilde [1854 – 1900]).

 

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Mariana Basílio
é escritora, poeta, ensaísta e tradutora. Nascida em Bauru, interior de São Paulo, em 1989.  Mestre em Educação pela Universidade Estadual Paulista (Unesp). Publicou os livros de poesia Nepente e Sombras & Luzes. Colabora em portais e revistas nacionais e internacionais, tendo traduzido nomes como May Swenson, Alejandra Pizarnik, Edna St. Vincent Millay, Sylvia Plath e William Carlos Williams. Com patrocínio do prêmio ProAC (2017) do Governo de São Paulo, publicou em 2018 o seu terceiro livro, o poema longo Tríptico Vital. O projeto também foi finalista do programa de Residência Literária do SESC (2018). Mantém o site Mariana Basílio