ESPÍRITO EM SÃO PAULO NÃO DÁ CERTO – LILIANE PRATA

Sempre fui de chorar muito. Choro por motivos diferentes e em momentos variados, mas oito da noite é meu horário fixo de chorar. Meus filhos já sabem: não adianta me telefonar perto das oito. Faço um chá de hortelã, pego uma caixa de lenço, programo o despertador e sento na poltrona. Quando o alarme toca, enxugo as lágrimas finais, ligo a TV e vejo a novela. Nunca choro vendo a novela. Às vezes, eu rio.

Meu sonho é ver um espírito. Moro em São Paulo e lamento que quase nenhum espírito apareça por aqui. Minha irmã que mora em Minas comentou que eles gostam mais de lá. Mesmo assim, tento me comunicar com eles. Nunca consegui. Já falei em voz alta pela casa que eles podem aparecer, já deixei recado na geladeira, acendi vela. Moro sozinha e já deixei claro: podem puxar minha perna quando eu estiver dormindo. Não puxam. O máximo que acontece quando estou dormindo é acordar com os gritos da vizinha do lado. Ela sempre grita por volta das duas da manhã, não sei por quê. Vai ver é o horário dela de chorar.

Sempre fico me iludindo, achando que vi o vulto de algum espírito. Mas nunca é. Uma vez, eu estava na cozinha e vi um vulto no quintal. Primeiro achei que fosse a diarista, mas aí lembrei que não era o dia dela. Então fui atrás do vulto cheia de esperança, pensando: agora, sim, agora, sim! Mas era só um ladrão. Outro dia, eu estava na sala e vi um vulto entrando na cozinha, e aí falei: dessa vez é um espírito! Mas era só meu gato correndo. Meu gato sempre passa correndo. Tenho inveja quando ele faz isso, porque tenho certeza que ele está vendo um espírito.

Hoje à noite, farei um ritual para tentar, mais uma vez, ver um espírito. É um ritual que minha sobrinha achou na internet e me mandou. Toda a família sabe que tenho essa vontade de ver espíritos. Não sei por que tenho essa ligação com o lado de lá. Minha sobrinha fala que me entende, que o lado de cá tá uma merda, mesmo. Mas não acho que é só isso. Sinto uma verdadeira necessidade, sabe? Uma atração. Sei lá. Minha avó dizia que, quando a gente sente uma atração forte por alguma pessoa ou situação, é porque nossa alma precisa daquilo. Acho que é por isso que, no aniversário de noventa anos, minha avó não teve vergonha de encomendar um bolo de maconha. Minha mãe falou que ela tinha enlouquecido. Eu não acho que ela enlouqueceu. Acho que a alma dela precisava daquilo.

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Estou muito empolgada! Ontem à noite, vi um espírito!

O nome dele é Matias. Não era um vulto, era igualzinho uma pessoa, só um pouco mais transparente, quase nada. Ele estava de camisa xadrez, usava chapéu e bigode falso. Me contou que havia morrido em uma festa junina, em Minas, e foi atraído aqui para São Paulo por conta do ritual que eu fiz. Eu nunca havia imaginado que um ritual simples, feito com vela, papel queimado e giz de cera, fosse tão poderoso. E não gastei quase nada. A caixinha de giz de cera custou dois e cinquenta.

Passamos a madrugada conversando. Matias me contou sobre as coisas que ele gostava de fazer quando estava vivo. Disse que era casado com uma mulher muito boa lá em Pouso Alegre, a Cecília, mas acabou se apaixonando por uma também muito boa lá em Santa Rita do Sapucaí, a Isabela, e passou algum tempo com as duas. Não valia nada, esse Matias. Até que a Cecília descobriu, telefonou para a Isabela, e as duas ficaram tão amigas que resolveram organizar essa festa junina na região, e depois disso o Matias não lembra mais o que aconteceu. Em seguida, ele me contou sobre as coisas que ele faz agora que está morto. É uma rotina tranquila: ou ele está assustando as pessoas, ou está lá, vendo o que elas estão fazendo. Ele detesta ver o pessoal comendo chocolate ou fazendo sexo. Prefere quando estão assistindo a um filme. Odeia quando só assistem a um ou dois episódios. “Gosto de maratonar as séries”, ele explicou.

Eu já estava ficando com sono, quando Matias tentou pegar a minha mão e me beijar. Aí ele lembrou que era um espírito e me perguntou se eu tinha alguma amiga pra ele entrar nela e a gente conseguir ficar, como naquele filme “Ghost – Do Outro Lado da Vida”. Ele até sugeriu uma amiga minha, a Aninha – já acompanhou algumas séries com ela quando ela esteve em Minas, Aninha adora maratonar série. Falei que ia ver se ela topa vir aqui em casa hoje à noite e fazer o ritual comigo. Ele se despediu todo feliz.

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Dei o cano no Matias. Ah, sei lá por quê. Nem cheguei a ligar pra Aninha. Acho que minha alma não precisa mais encontrá-lo. Eu queria ver um espírito, vi, conversamos, pronto, acabou. Sempre fui volúvel. Se bem que, com algumas coisas, sou sistemática. Por exemplo, hoje à noite, tudo o que eu quero é chorar e assistir a minha novela em paz. Depois disso, vou dormir. Estou pensando aqui: depois que eu morrer, preciso entrar na casa de alguém que vê novela. As pessoas acompanham cada vez menos as novelas, e assistem batendo papo, digitando gracinhas no Twitter, não gosto de nada disso. Quero encontrar a casa de alguém que vê novela bem quieto, como eu. O máximo de barulho que a pessoa pode fazer é rir.

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Ontem passei mais uma noite em claro. Matias ficou o tempo todo entrando no meu quarto pra me assustar. Ele tem feito isso a semana toda. Já joguei fora as velas, o papel queimado, o giz de cera, está tudo no lixo, mas ele tem vindo sem ser convidado. Está furioso comigo. Como esse Matias é chato! Ainda bem que contei tudo pra minha sobrinha e hoje ela encontrou na internet um ritual pra ressuscitar espírito. Falei que não queria ele vivo perto de mim, mas ela disse que esse ritual manda todos os mortos para Minas Gerais. É de onde ele não devia ter saído, mesmo depois de morto. Espírito em São Paulo não dá certo.

Me perdoem, Cecília e Isabela, mas eu preciso dormir.

 

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Liliane Prata é escritora e jornalista. Entre seus livros, estão Sem Rumo (Planeta) e Eu Odeio te Amar (Gutenberg). Liliane mantém um canal no YouTube, Canal da Lili, onde fala sobre comportamento.