I
Tudo acontecia rápido demais
Tarde demais
O que se viu naquelas horas de escuridão
não seria o fim
Corpos estendidos nas ruas
apedrejados pelos povos da noite
Tudo é caos
desordem
anarquia profunda
Histeria coletiva
desordem e regresso
Armas de fogo de todo calibre
matando-se à revelia de Deus
Um idoso pra lá dos sessenta
terno amassado
mão esquerda com a coleira
do seu querido fox terrier
carregando-o à força
sem perceber
que o animal jazia em sua companhia
Em sua mão direita uma pistola
disparava contra o garoto negro
de boné e calças largas
que acabara de matar o skatista japonês
A senhora negra da foice aguardava o desenrolar da cena
A Paulista virou Afeganistão
seus prédios bancários estavam em ruínas
a Mata Atlântica tomou conta do asfalto
No lago do Anhangabaú pulavam peixes
a procura de carne
Seis da manhã
tenho que descer oito lances de escada
A rua sem vozes
silêncio. Absoluto
Carros abandonados
fantasmas a vagar
procurando
Não há mais lei
sobreviver
Luto para não ser englobado pela irracionalidade
Prefiro os devaneios ao pensamento coerente
A caçada iminente
Exasperado buscando sentidos
algo mais além das fronteiras
Estado bruto, instinto animal
Fábricas não fabricam
o medo do começo do fim prenuncia
roedores exploram baleias humanistas
As tribos estão formadas nas trincheiras de concreto
A limpeza étnica nos meios sociais
cortando conhecimentos fundamentais
eram jogados de lado em novas Auschwitz
Sem luz elétrica, bem-vindos à Idade Média
O cinturão periférico apertou a burguesia
a brutalidade desumanizava
não há espaço para humanoides
Tudo se perdeu
nefasta eleição no começo do século vinte e um
As sombras perpetuam o falador de pensamentos
Vejo-me cheio de cortes
ao mesmo tempo
rasga-me
a parte que regenera
Visão apocalíptica de um passado pouco remoto
correndo pelas frestas, sem escrúpulos
II
A caçada começou
A morte anunciava sua chegada
desde a restauração da democracia
Inúmeros pretendentes postulavam
o direito de escrever essa grafia
No primeiro dia de janeiro
daquele ano longínquo
tomava posse o presidente
Não havia ser humano mais oblíquo
nas visões daquela velha vidente
a odiar com olhos de vespeiro
Houve protesto
Houve revolta
Houve intento
Houve massacre
O exército foi às ruas
contra o próprio povo
O mundo via absorto
e nada fazia
O terrorista decretou o derretimento do congresso
Senadores, deputados e vereadores
juntavam-se aos juízes e pescadores
nas prisões especiais criadas pelo Anticristo regresso
O Louco compra centenas de bombas nucleares
legitimando o Estado opressor
Declarando ao mundo intenções imperiais
As mulheres foram proibidas
de sair do lar
e ficou determinado que só
serviriam para procriar
A criminalização do gênero
prendeu e matou gays, lésbicas e trans
a purificação da raça
exterminou negros, vermelhos e amarelos
Focos de resistência se estabeleciam
cientes da implacável pena a chegar
mas nas fontes de esperança bebiam
e nos voos dos pássaros viam a liberdade voar
As famílias de bem estavam a festejar
em seus bairros harmônicos
indiferentes às bombas, soldados e tanques
daquele cotidiano anacrônico.
O ditador extinguiu direitos da população
os pobres que não tinham força para lutar
eram tatuados com códigos de barras
para a ração farinácea receber
Na Avenida Coronel Ustra
antiga Avenida Paulista
O desfile militar lustra
o toque de recolher
Hordas de evangélicos ensandecidos
em transes oratórios
preparam-se para combater
São as cruzadas e mártires santificados
Com a ajuda estadunidense
Milhões de brasileiros morrem
na invasão à Venezuela
Dentro do território
bombardeios destroem a cidade
A internet é desativada
Carros de som trafegam entre destroços
propagando a publicidade opressora
E a nova notícia tratava de caroços
um câncer impregnava o neonazista
Não adiantou a Resistência descobrir
que mesmo antes da famigerada eleição
as células já lhe estavam a digerir
e que a facada era uma encenação
O general da alucinação
tomou pra si o poder da ditadura
e com inexorável repristinação
fez-se o Hitler de sua geração.
III
Os caçadores
O mundo atordoado
declara guerra ao Brasil
Paletós abotoados
discursam dentro do covil
A invasão é inevitável
os rebeldes articulam dos esgotos
enfrentam os generais do apocalipse
na selva amazônica
Aviões B-52 Stratofortress lançam bombas
em todo o território nacional
Lá de Brasília a ordem é dada
Mísseis nucleares voarão como pombas
Hackers russos invadem o sistema de controle
e desviam os vinte e seis mísseis lançados
Vinte e seis capitais brasileiras em descontrole
Vinte e seis cogumelos crescem parados
IV
Ano 2158
Acordei
de súbito
de pesadelo
todo suado
Lavo a cara
minhas mãos
passam pelo
rosto deformado
Seis da manhã
tenho que descer oito lances de escada
A rua sem vozes
silêncio. Absoluto…
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Daniel Perroni Ratto é poeta, jornalista, músico, pós-graduado em Mídia, Informação e Cultura pela ECA/USP. É autor dos livros, Urbanas Poesias (Ed. Fiúza, 2000), Marte mora em São Paulo (A Girafa, 2012), Marmotas, amores e dois drinks flamejantes (Ed. Patuá, 2014) e VoZmecê (Ed. Patuá, 2016), finalista do Prêmio Guarulhos de Literatura 2017. Participou das bandas Loco Sapiens, Criolo Branco e Luz de Caroline. Foi cronista do UOL Música, é colaborador na editoria de música do portal Culture-se.com e do jornal Diário do Nordeste. Faz parcerias de composição com artistas da cena musical brasileira como Tatá Aeroplano, Douglas Mam. Bleck a Bamba, Daniel Medina, Juli Manzi, etc. Em 2015, participou com poema e voz da música “Brasil”, da banda Bleck a Bamba, ganhando o segundo lugar de melhor música do Festival de Rock de Indaiatuba. Seus poemas também estão em revistas literárias de todo Brasil como a Revista Gente de Palavra (RS), Mallarmargens revista de poesia & arte contemporânea (PR), Revista Quincas (SP), Jornal RelevO (PR), Revista Subversa (BRA/POR), Germina (MG), entre outras. Em 2015, foi homenageado pela AMUSITA – Associação dos músicos de Itaitinga (CE). Em 2016, foi homenageado em duas oportunidades, pela Revista Gente de Palavra e pelo Sarau Sopa de Letrinhas. Curador de eventos literários como a Quinta Poética na Casa das Rosas, também participa ativamente da cena de saraus em São Paulo e, com o poeta Pedro Tostes, criou o Sarau Palavra Subterrânea. Em 2015, Daniel Perroni Ratto foi um dos poetas selecionados pela curadoria do evento para integrar a “Exposição Poesia Agora”, no Museu da Língua Portuguesa, em 2017, na Caixa Cultural de Salvador e na Caixa Cultural do Rio de Janeiro.Participou, como convidado, da XI Bienal Internacional do Livro de Pernambuco, onde esteve na mesa “Mercado Editorial” do I Seminário de Escrita Criativa e, também, apresentou seu livro VoZmecê, na Plataforma de Lançamentos da Bienal. Participou do livro Golpe: antologia-manifesto (Nosostros Editorial, 2017) Daniel Perroni Ratto é editor da Editora Algaroba.