FOGO – TOBIAS CARVALHO

O lugar que havia escolhido para morar era bem diferente de sua casa anterior. Era pequeno e só tinha um quarto.

Já não bebia tanto. Seus hábitos alimentares se tornaram mais saudáveis. Era um motorista mais tranquilo, ainda que houvesse descoberto no piloto automático uma ferramenta conveniente. Flertava, mas nunca chamava ninguém para sair. Não saía muito à noite nem via graça em ter amigos, mas ainda ria de boas piadas, dava sempre bom dia ao porteiro, não conseguia resistir a mais um pedaço de chocolate.

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Seu apartamento era de paredes cinzas, sua cama era semicasal, seu prédio tinha apenas quatro vizinhos, seu criado-mudo ostentava os últimos livros lidos e caixas de dipirona.

Saía para trabalhar, ainda que agora só sustentasse a si próprio, e ainda que ele e o marido houvessem acordado em dividir tudo pacificamente no momento em que se descasaram.

Por fora, haviam sido compreensivos e práticos: que cada um levasse para si o que lhe trouxesse as melhores recordações. Dividiram a dor também. Todo aquele pequeno universo que compartilhavam havia sido dividido em dois, incluindo chuvas de meteoros e buracos-negros.

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Quando chegou ao novo lar pela primeira vez, sentou-se na pequena sala e chorou. Primeiro chorou um pouco, depois com força e depois com raiva. Terminou rindo. Riu tanto quanto rira durante todos aqueles últimos anos, mas, nesse dia, era um riso histérico e insalubre.

Quando era pai, chorava de alegria.

Era não mais pai, como se dele tivessem tirado as coisas com que mais lhe agradava definir-se aos outros. Naquele instante, quis descer até sua garagem, pôr fogo em seu próprio carro e vê-lo explodir, como uma oferenda ao passado, como uma nota de escárnio aos deuses. Procurou uma garrafa de álcool de cozinha e um pano, mas deteve-se. Não tinha coragem. Um carro valia dinheiro.

Quando era pai, tinha coragem e era herói.

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Ia deitar-se todas as noites esperando pelo menos meia hora até que pudesse fechar os olhos e dormir. Acordava triste. Julgava-se morto.

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Telefonou para o ex-marido com o número privado. Queria ouvir sua voz. Queria senti-la passeando leve por todos os cantos de seu corpo. Ninguém atendeu.

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Saía para correr e pensava em morte. Nunca ninguém lhe havia dito a morte. Seus pais o poupavam de ir a enterros, e não haviam feito esforços para que ele soubesse como a morte operava. O que tinha era uma vaga ideia do conceito: sabia que as células morriam.

Aprendeu que quando morre alguém, morrem as pessoas ao seu redor. Ele morria todos os dias. Sentia que um dia a morte ia cessar e que ele estaria em paz, ou morto por inteiro.

Olhava para as paredes cheias de mofo e via vida. Ria, que era o que lhe restava.

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Todos os dias, reservava pelo menos dez minutos para se olhar no espelho ininterruptamente. Conseguia, dessa maneira, separar-se de si mesmo, como se estivesse fitando outra pessoa, e não o próprio reflexo. Durante dez minutos dentre os mil quatrocentos e quarenta do dia, tirava de dentro de si o foco de seu desprezo, de sua pena e de sua incredulidade.

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Bebia muita água, talvez para se reencontrar com a vida, para evitar um incêndio, para se purificar, ou para se afogar.

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Na metrópole, pessoas tiram a própria vida todos os dias. Os transeuntes passam ao lado das poças de sangue, os corpos infelizes ainda quentes. Ninguém para o que está fazendo para olhar. Parecia injusto que ele pudesse se livrar da dor tão facilmente, quase que sem custo ou redenção.

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Sentava no banco das praças para assistir às crianças brincando. De longe, gargalhava junto com elas e sentia suas alegrias, como se fosse ele que estivesse na ponta do balanço, sob a mínima tensão das duas cordas, descobrindo a utilidade do equilíbrio e a sensação do vento no rosto.

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Com o passar dos anos, passou a sentir menos dor. Concomitantemente, sentia menos alegria, menos frio e calor, menos prazer em ter mais horas de sono, menos raiva dos juízes de futebol e menos vontade de procurar motivos para justificar seu esforço no trabalho.

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Seu universo havia sido atropelado. Nunca mais seria pai nem homem nem feliz. Talvez se adequasse àquela condição em alguns anos. Sabia que só chegara àquela ruína porque um dia havia construído seu próprio império. Não encontrava forças para queimar a ruína, nem queimar seu carro, nem a si mesmo. Não sobrara nada dentro de si.



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Tobias Carvalho
nasceu em Porto Alegre em 1995 e é formado em Relações Internacionais pela UFRGS. Seu livro de estreia, As Coisas (Editora Record, 2018), foi vencedor do Prêmio Sesc de Literatura de 2018 na categoria de contos. Este conto integra o livro As Coisas.