Sopro
Subitamente,
uma brisa arrepia sobrancelhas,
o mar agudo adentra ossos,
das ondas só o sal permanece,
dedos param de assustar bem-te-vis.
Chegada a hora da esfinge,
o momento é de despir
a pele,
entranhar o casco retorcido
no corpo,
ouvir a orquestra de tom
bar mudez.
Luto
Olhar-se
no espelho
e ter a impressão
de ruminar corvos.
Asas d´água
Passei a vida ouvindo a
afirmação das tias:
“formiga de asa é
prenúncio de pé d´água.
Dá azá matá”.
Curioso, compadecia-me ao
observar a ruína do voo,
a diferença nas ínfimas asas,
como se em cada transparência
repousassem partículas
de tempestade.
Titia morreu.
Logo em seguida sua irmã.
Foi então que entendi a queda
copiosa das águas.
Desde esse dia
carrego comigo a
impressão de que as tempestades,
assim como as lágrimas,
são prenúncios de voo.
Engano
Por cima da mesa,
minha avó regava
com seus olhos
as flores de plástico.
Fizesse sol ou chuva,
adormeciam intactas, na mesma posição.
Embora soubesse que as flores,
assim como as fotografias,
permaneciam novas hipoteticamente,
desejava também um coração de plástico.
Às visitas, entre o belo
espanto pelas tristes flores
e uma xícara de chá,
despertava na voz a certidão:
— estão aí para enganar a morte.
Funduras
Chegará o dia
em que minha nau
assentará seu limo
de léguas.
Pedras turvas
e secas a esperam.
Surgirá o dia
em que minha nau
aposentará sua âncora.
Não mais a profundidade
das redes.
Cascos seguirão rasos.
Chegará o dia
em que minha nau
abandonará o sal da proa.
Não mais a liberdade azulada.
Nesse dia
—
de pedras
e terra
e lembrança de funduras
—
seguirei repleto
de todas as águas.
Testamento
Não almejo ser bicho.
Se deus existir,
que me valha
e me livre do oco
esquecimento.
Anseio ser peso de vento
desabando em marfim.
Ambiciono tocar o orvalho
com minha gris fuligem
do tamanho de insetos.
Se deus existir,
que me valha e livre
da perpétua nogueira.
Intento é regar a terra
que meu amor pisou
e uma calçada
de largo horizonte.
Beleza
Algumas palavras são
extremamente belas.
Não se sujeitam aos
frêmitos da voz.
Morte, por
exemplo, é tão
bonita e aguada
quanto Rio ou Mar.
Despenca
colinas escuras na
passagem entre o
feixe e o arenoso.
Belas,
algumas palavras
não quedam
ou oxidam,
duram mais
que a boca
e o sentido
dos dentes.
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Angel Cabeza nasceu no Rio de Janeiro. Poeta e cronista, atua como produtor editorial e produtor gráfico. Publicou Sempre existe um último momento (crônicas, RJ, 2011) e Vidro de guardados (poemas, RJ, 2010). Integra as antologias Os melhores poemas de 2016 (ZL Editora, RJ, 2017, edição bilíngue), O Casulo (Patuá, SP, 2017), 29 de abril, o verso da violência (Patuá, SP, 2015), Escritores da Língua Portuguesa, Volume I (ZL Editora, RJ, 2012), Qasaêd lla falastin — Poemas para a Palestina (Patuá, SP, 2013) e Geração em 140 caracteres (Geração Editorial, SP, 2012). Possui textos publicados em diversas revistas literárias, entre elas Germina, Zunái, Odara (UFRJ), Gueto, Subversa, Eutomia, Vício Velho, Cronópios, Cuarto Propio (Universidade de Porto Rico), Verso Destierro (México) e Generación Espontánea (Madri).