L’HYDRE-UNIVERS – ANDRÉ BALBO

O velho era magro e seco, com profundas rugas na nuca. Manchas castanhas afligiam suas bochechas, correndo rosto abaixo, e as mãos tinham cicatrizes arraigadas pela faina dos anos. Trazia mais triste a fisionomia, maiores as olheiras. Seus olhos muito azuis rutilaram como a nudez da lâmina em sua incursão súbita e precisa, de baixo para cima e com o fio para dentro. “O que é uma ilha?”, o velho lamuriou, meu braço esquerdo em arco amparando sua queda estertorante. Temeroso de que outros descobrissem o que havia se passado ali, encovei seu débil corpo no manguezal, cobrindo-o com areia e depois algas, siriúbas e samambaias. Em meu regresso à vila dos pescadores dei-me conta de que não cuidara de memorizar onde escondera o corpo; mais tarde, achando imaculada minha adaga, à cintura, e livre de resquícios minhas vestes, com pachorra inferi que tudo havia acontecido num sonho. E como sonho narrei o episódio a toda a gente do litoral. Entre os ouvintes houve um que foi procurar o cadáver escondido e, depois de dois dias, o encontrou. Colocou-o num saco de ráfia bem cosida e levou-o para sua casa, dizendo à esposa:

— Um homem sonhou ter matado um velho, esquecendo-se de onde o escondeu. Eu o encontrei.

Você mesmo deve ter sonhado que viu um homem que matou um velho — disse a mulher. — Acha mesmo que esse homem existe de verdade?

— Ainda que eu tenha sonhado, o fato é que eu achei o corpo de um velho, então de que vale discutir qual de nós sonhou?

Naquela noite, resguardei minha adaga entre o estrado e o colchão e, quando caí no sono, ainda pensava no velho. Aconteceu-me sonhar com o lugar onde o havia enterrado e também com quem o havia encontrado. À primeira luz matinal fui à casa do homem que encontrara o corpo. Estando sozinho, revelou-me um saco de ráfia atulhado. Seus olhos hesitaram do meu rosto até o do cadáver, duas ou três vezes, as sobrancelhas contratas, a testa em estrias, os lábios tremelicando uma suspeição, a jugular perfurada pelo fio veloz antes que pudesse espichar o motivo de seu assombro.

Essa segunda morte não a relatei a ninguém. De volta à minha casa, lembrei-me de onde enterrara ambos, o homem e o velho. Também na manhã seguinte estava acesa minha memória. Caminhei até a praia, plantando os pés nus na areia úmida, meus tornozelos lambidos pelo sal cortante. Contemplei o traçado gris da ilha remota, minha lucidez perdida em reminiscências. Recolhi com mãos sulcadas e em concha um pedaço de mar e lavei meu rosto, sentindo a textura irregular de minhas bochechas e pescoço. O primeiro sol não era nocivo.

 

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André Balbo é editor e cofundador da Lavoura, revista de literatura brasileira contemporânea. Autor dos livros de contos Estórias autênticas (Patuá, 2017) e Eu queria que este livro tivesse orelhas (Oito e meio, 2018). É colaborador da Philos – Revista de Literatura da União Latina e foi cocurador da Casa Philos na Flip 2018. É editor, revisor crítico, preparador e parecerista freelancer.