Nos últimos meses acordo com tiroteios todos os dias. Não moro em favela, meu IPTU é caro, meu condomínio tem piscina e segurança 24 horas.
Afasto meus filhos das janelas. Abaixo o volume da tevê. Fico de olho na fechadura da porta. Não confio no porteiro, no zelador, na faxineira.
Minha sombra encompridou. As pessoas estão grosseiras. Sinto falta de ar. Quero berrar a cada meia hora.
Meu marido dá risadas. Ignora os tiros, os assaltos, a crise do país, a grosseria das pessoas. Seu interesse é o futebol. Quartas e domingos. Dorme tranquilo todas as noites. Ronca fortemente. Engordou mais de quarenta quilos depois que casamos.
Reclamo com ele do medo e aflição que me acompanham. Ele me abraça com seus braços fofos e diz que eu preciso, com urgência, comer umas costelas e tomar um sorvete de paçoca com cobertura de chocolate.
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Alê Motta é arquiteta formada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Participou da antologia 14 novos autores brasileiros, organizada pela escritora Adriana Lisboa. Interrompidos (Reformatório, 2017) é seu livro de estreia.