Nem redenção nem rendição – Casé Lontra Marques

Nem redenção nem rendição. Diante da brutalidade diária mas indigesta, do embrutecimento — não só da desinibição — dos tribunais que introjetamos; diante dessa atrocidade subterrânea ou não/sorrateira ou não/silenciosa ou não. (Desprezo.) Entre frondosas, frutíferas crueldades em alguma medida consentidas. E enfim desatravancando as entranhas, afirmo (apenas pelo prazer de afirmar, pela potência que habita tal prazer afinal tão irreconciliável quanto irredutível): desprezo, sim. Desprezo a vida que diminui a vida (e diminuir a vida é também não confrontar. Diminuir a vida é também não comprometer a vida). Espontaneamente: desprezo. Como uma forma de flutuar. Pacientemente: desprezo; — com a ferocidade do amor que há em mim, com a felicidade do ódio de que não abro mão; — desprezo e desprezo e desprezo a vida que limita (ou deslegitima) a vida. Que mitiga (ou criminaliza) a vida. Sobretudo aquela que desconhece alegria sem sangue sem pus sem gangrena.
Sabe?
Até o suicídio. Diante da brutalidade diária porque indigesta. Até o suicídio é um ato de vida. Não se trata de morte; da morte
temos hipóteses
pouco úteis. Quando já não existem sequer estilhaços-estímulos-estuários de vida exilados da dor (das duras dimensões da dor), suicídio é o gesto extenso. Melhor: suicídio é o gesto terreno de um corpo que não abdica
do
vigor cujo pólen (não néctar) abastece — e principalmente municia — tudo que pulsa. Ou vibra. Ou vibra. Em outros planos,
em novos
palcos de propulsão. Os fetos
que
carrego falam: um cadáver é paisagem que prolifera. (Tecido intrans
i
gente, testemunha
intersticial?)
Esgoto o rosto. As ruínas. Os horrores que produzem um rosto. E lanço a língua para longe. O lugar
da língua
é a lesão. A elisão. Suas sementes são sequelas. Larvas
nada
dóceis. Borbulhando. A boca
continua uma ferida
incerta. Que renasce. Condensando a solidão. Que renasce
fora
da carne. Dos mantos
e mantras
da carne. — Contra
o cinismo que nos acelera, a sutileza
da
hesitação? — Sem mastros ou margens:
todo sono
é ancestral. E o perigo
do
sono. O perigo do sono é (ainda)
a
sua tranquilidade.

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Casé Lontra Marques nasceu em 1985, em Volta Redonda (RJ). Mora em Vitória (ES). Publicou Desde o medo já é tarde, O que se cala não nos cura e Campo de ampliação, entre outros. Disponibiliza o que escreve em sua página pessoal.