Josué lutou em duas categorias quando era lutador profissional, meio-médio, na maior parte da carreira, e médio-ligeiro, no final, quando já aceitava todo tipo de luta. Não chegou à elite do boxe, embora fosse um lutador técnico e dono de um uppercut letal. Fora dos ringues há mais de dez anos — e sobrepeso que o colocaria entre os meio-pesados —, Josué se virava como podia, às vezes trabalhando como segurança de algum empresário ou político, outras como técnico de algum jovem promissor. Estava sem beber há quatro anos, muito graças ao Benjamin, dono da academia que ele frequentava desde os nove anos e seu ex-treinador, como de tantos outros nos últimos cinquenta anos. O velho Ben, era assim que os rapazes o chamavam, sempre considerou Josué um filho, e segurara a barra da depressão e do alcoolismo do ex-pugilista.
O treino da manhã costumava começar cedo, por volta das cinco. Era um pessoal que vinha do serviço na madrugada, vigias, bombeiros, policiais, garçons, ou que acordava ainda escuro para treinar antes de ir para o trabalho. Uma gente mais casca-grossa, comprometida com a arte, pensava Josué, diferente daqueles que treinavam por volta das sete, oito da noite. Ele preferia estar com o pessoal da madrugada, sua gente. Josué estava sentado em um banco de madeira em um canto do grande galpão que funcionava como academia do velho Ben. Via um pequeno grupo colocando a bandagem de proteção nas mãos e conversando.
— Bom dia, garoto — disse o velho Ben, que se aproximou sem que Josué percebesse. O velho chamava todo mundo de garoto.
—Bom dia, Ben — disse Josué.
— Não vai treinar hoje, garoto?
— Estou esperando o Thomas. Vamos fazer uma sessão de luvas.
— Thomas luta quando? Mês que vem?
— Daqui a vinte dias — respondeu Josué.
O velho não disse mais nada. Deu um tapa no ombro do Josué e foi em direção ao grupo, que já se aquecia fazendo exercícios de repetição em frente ao espelho.
— Vamos lá, seus preguiçosos — gritou Ben.
O treino começara.
Josué observava enquanto esperava Thomas e pensava em como era revigorante o sentimento de pertencer àquele lugar. Quase perdera tudo, pensou. Se não fosse o velho. Olhou com afeição para Ben. Obrigado, meu bom amigo, disse em voz baixa, para si mesmo.
Seus pensamentos se voltaram para o jovem. Thomas nunca se atrasa, admitiu Josué, pegando o telefone celular no bolso da calça. Ligou para o rapaz. Caixa postal.
— O que foi, garoto? — Perguntou Ben, que novamente se aproximou sem que Josué percebesse.
O velho parecia não tocar o chão. Devia ter um jogo de pernas espetacular em seu tempo de lutador, presumiu Josué.
— Thomas nunca se atrasa e seu telefone só cai na caixa postal — respondeu. Aconteceu alguma coisa. Vou atrás dele.
Josué saiu do galpão e entrou no carro. O que pode ter acontecido? Thomas não é de fazer besteira. Tem futuro. Que droga, rapaz! Onde você se meteu? Josué virou a chave da ignição. O motor pegou. Primeiro, o seu apartamento, decidiu. Deu a partida.
O ex-pugilista parou o carro em frente ao prédio que Thomas morava. Era uma construção baixa, de cinco andares, feita de tijolos de barro e construída há mais de um século. Não tinha elevador. Subiu a escada até o terceiro andar e percebeu a porta do apartamento de Thomas entreaberta e com sinais de que fora forçada pelo lado de fora por um pé-de-cabra. Ele abriu a porta tomando cuidado para não fazer barulho. Entrou no apartamento.
À esquerda ficava a cozinha, que estava vazia. Seguiu em frente e, ao chegar na sala, encontrou o rapaz sentado numa cadeira de ferro, amarrado, com o rosto ensanguentado coberto por hematomas. Tinha um pano de chão enfiado na boca. Josué correu em direção à cadeira quando foi surpreendido por dois homens. Esquivou-se do primeiro, que tentara atingi-lo com um soco, e acertou um cruzado de esquerda na orelha do segundo, que vinha logo atrás e caiu com o golpe. Virou-se e teve tempo de encontrar o primeiro homem ainda desequilibrado; derrubou-o com um direto no maxilar.
Então, tudo escureceu. Josué não percebeu um terceiro indivíduo se aproximar dele; a coronhada em sua nuca o apagou. Acordou preso a uma cadeira de ferro ao lado da cadeira do amigo.
— Josué, faz tempo, hein! Pensei que estivesse morto de tanto beber, mas até que está com uma cara boa. Quem diria? — Disse o homem que dera a coronhada.
— O que faz aqui, Rick? O que você quer?
— Ora, ora! O velho pugilista virou babá? Estou vendo que ainda se lembra de alguma coisa dos velhos tempos, derrubou esses dois idiotas com facilidade. Está treinando o rapaz?
— Sim, por quê?
— Porque você vai precisar colocar juízo na cabeça desse moleque. A gente tem uma mala de dinheiro pra ele, mas ele não quer cair no segundo round. Aí fica difícil, sabe?
— Ele não vai entrar nessa, Rick. Cai fora!
— Você conhece o jogo, Josué. Não depende de mim. A gente só obedece.
— Eu sei muito bem, mas o Thomas vai ser campeão um dia, não vai participar dessa patifaria.
— Patifaria? O que foi, Josué? Virou santo? Você já recebeu muita grana suja e agora vai dar uma de honesto pra cima de mim? Vá se foder! Ou o moleque entra no esquema…
— Ou o quê? Vai apagar a gente?
— A ordem é apagar o moleque se não aceitar o acordo.
— O rapaz é fora de série, Rick. Deixem ele em paz.
— Não funciona assim, Josué.
— Então liga pra eles, diz que o garoto vai valer mais quando for campeão. A gente faz um trato. Eu me responsabilizo, vai.
Ricardo ficou em silêncio. Pensava no que Josué tinha acabado de dizer. Os dois capangas estavam agora perto da porta da cozinha, em pé. Haviam usado o banheiro para limpar o rosto. Um deles tinha um corte na boca e pressionava-o com um pedaço de papel higiênico para estancar o sangue. Thomas escutara toda a conversa sem poder se manifestar. Permanecia amordaçado e seu rosto estava bastante inchado, não era possível ver seus olhos.
— Tudo bem, vou ligar, Josué. Mas saiba que faço por você, sempre gostei do seu jeito de lutar. Você tinha estilo, parecia aqueles antigos lutadores.
Ricardo se afastou, pegou seu telefone celular e fez a ligação. Menos de dois minutos, voltou.
— Não vai rolar, Josué. Sinto muito. — Antes que Josué pudesse falar mais alguma coisa, Ricardo sacou a pistola que estava em um coldre de ombro sob o seu casaco e acertou dois tiros no peito de Josué, que tombou levando consigo a cadeira. Thomas começou a se revirar e tentou gritar. Se não fosse o rosto desfigurado, seus olhos estariam arregalados àquela hora.
— Então, moleque, disse Ricardo, vai ficar com a mala ou vai fazer companhia pra esse traste no inferno? O que foi? Não entendi. — Ricardo tirou o pano de chão da boca de Thomas.
— Eu aceito. Fico com a mala.
— Ótimo. Bom rapaz. Viu como foi fácil?
Ricardo guardou a pistola no coldre e deu uma última olhada no corpo do ex-pugilista caído no chão. Uma poça de sangue havia se formado. Uma pena, eu gostava dele, era um cara durão, lamentou-se. Em seguida, caminhou para a porta e, antes de sair, ordenou aos capangas que arrumassem a sujeira e se livrassem do corpo. A luta seria adiada algumas semanas.
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Rodrigo Novaes de Almeida é escritor e editor. Carioca, reside em São Paulo. Em novembro de 2016 criou a Revista Gueto, portal de literatura que publica, divulga e lança escritores e poetas em língua portuguesa. É autor do livro Das pequenas corrupções cotidianas que nos levam à barbárie e outros contos (Editora Patuá, 2018).