O VIZINHO – HENRIQUE WAGNER

Era final de tarde quando abriu a janela do quarto e olhou lá para baixo: mais perto que a padaria onde comprava as melhores queijadinhas de sua vida. E onde a moça ruiva do caixa era excessivamente gentil com ele, quase o colocando dentro do saco de papel do pão para chegar bem protegido em casa. Os olhos dela eram verdes, no entanto.

O apartamento não lhe agradara tanto assim, mas ficava no sétimo andar, e ele adorava o número sete, gostava de afinações em si maior ou mesmo bemol e naquela tarde estava ouvindo a Sonata N°2 para piano, de Boulez, interpretada pelo jovem pianista finlandês Paavali Jumppanen. Só havia o 3 em 1 e o clarinete no quarto, e uma poltrona herdada da avó que tanto sofrera com a artrose da família.

Pensou na noite que chegava, quando mais uma vez poderia se proteger do teto se enfiando debaixo do cobertor, pensando em coisas boas como uma viagem a Buenos Aires, banho de cachoeira e um cão solidário lambendo seu rosto com o afeto que não conhecia nos homens.

Voltou para dentro do quarto inteiramente. Lembrou do vizinho. A notícia corria pelo edifício como se viajasse de elevador. Sentou-se no chão quase em posição de lótus, fechou os olhos e começou a respirar profundamente, uma respiração que aprendera no livro de um iogue famoso. Não conseguiu ficar nem dez minutos: de repente foram surgindo, como notas independentes numa orquestração para apresentar cada instrumento, uma coceira no nariz, uma dor no cóccix, um peso no pescoço. Abriu os olhos. A poltrona da avó e o clarinete continuavam no mesmíssimo lugar. Irritado, seguiu em direção à janela e colocou a cabeça para fora novamente. Olhou para baixo e sentiu sobre a cabeça o peso inesperado do vento, um vento estranho, muito frio, talvez gelado. O vizinho. Amanhã. Às dez horas. Lera a folha de papel sulfite colada numa das paredes do elevador.

Comeu alguma coisa em pé na cozinha, escovou os dentes no banheiro e, já no quarto, para encurtar a noite, tomou uma dose maior de clonazepam. Mesmo sabendo que não ouviria som algum por muito tempo, colocou a mesma Sonata de Boulez e deitou-se definitivamente sobre o duro colchão ortopédico. Deu tempo de pensar em algumas mulheres de sua vida: Virginia Woolf, Silvia Plath, Alfonsina Storni.

Não sabia sequer o nome do vizinho naquela manhã abafada, meio de semana, alguns moradores descendo pela escada mesmo, uma van esperando à porta do edifício. Ele só conhecia um morador, uma mulher de meia-idade, negra, e que dividia o quarto e sala com outra mulher de meia-idade, e até o momento ela não havia aparecido. O jeito foi ir sozinho mesmo. Num ato reflexo, desceu com o clarinete no case, acenou para um táxi e, do banco de trás, viu passar uma nova paisagem, triste, cinzenta, como a foto em preto e branco num jornal antigo. Jamais fizera aquele caminho.

Há quanto tempo não via tanto verde, tantas árvores, tantos nomes. Seguiu alguns dos moradores que vira sair antes dele e chegou ao velório. Pescou uma conversa e finalmente descobriu o nome do homem magro, o rosto ossudo, a testa larga e projetada, a cara de uns sessenta e cinco anos. Coragem ou desespero, o fato é que se jogar do Elevador Lacerda não lhe parecia nada prático ou inteligente. Até porque, não foi do Elevador Lacerda em si, mas da murada lateral que ia da entrada do elevador à fachada do Palácio Thomé de Souza.

Ouviu atrás de si uma voz rouca de fumante chamando seu nome. Era a moradora do segundo andar, a única pessoa com quem havia trocado mais que bom dia e boa noite no edifício. Ela perguntou como ele voltaria. De ônibus. Ela disse que tinha vindo com o pessoal da van. Ele perguntou se havia lugar para mais um.


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Henrique Wagner nasceu em 1977 em Salvador, Bahia. Poeta, contista e crítico de teatro, é autor de três livros de poemas e de um longo ensaio sobre estética da linguagem. Atualmente mora em São Paulo.