OITO ANDARES DE CONCRETO ARMADO – MAURO PAZ

Quando meu irmão ligou com a notícia, eu estava no banheiro do trabalho. Calças arriadas. Cinto solto. Ocupava a privada mais próxima da janela lateral.

“Preciso que você vá ao hospital, antes das sete horas, e assine a autorização”, disse Marlon. “A cada dia que passa pagamos mil reais”.

Eram quatro e meia da tarde. Fui à sala do superintendente pedir dispensa. A porta estava fechada e a secretária, sem descolar o fone da orelha, sinalizou para eu não incomodar. Vesti o casaco e assumi o risco. Só um imbecil completo não deixaria um funcionário sair antes do horário numa situação dessas. Ferreira, certa vez, depois de umas cervejas, confessou que detestava cotistas. Sentia asco de deficientes, em especial, anões. Ferreira foi babaca pra caralho, um grande pau-no-cu até. Agora, imbecil completo Ferreira não era. O cara criou a regra de feriados emendados. E quando meu pai morreu, Ferreira me chamou na salinha. Fechou a porta e disse para eu tirar quantos dias precisasse para colocar a cabeça no lugar. Caso eu quisesse, conhecia um bom psiquiatra cadastrado no plano de saúde. Ferreira à parte, alguns idiotas se encarregaram de me condenar por sair mais cedo. Como se vender seguros fosse a profissão mais nobre inventada pelo homem. E milhares de crianças africanas morreriam por eu atrasar um dia os processos de perda total que a seguradora enrolaria duas semanas para efetuar o pagamento.

Em direção ao metro, desconhecidos seguiam uns aos outros numa corrida imaginária. Todos com objetivo de chegar em casa e descarregar pelo ralo do banheiro a danação de um delicioso dia de trabalho. Na escada rolante, um senhor de terno amassado interrompeu a fila do lado esquerdo. Um garoto de boné alto e aba reta pediu licença. O velho era surdo ou se fez de desentendido. O garoto conteve a impaciência conferindo mensagens no celular. Perfilados, em frente a linha amarela sobre o piso emborrachado, os competidores aguardaram as portas dos vagões se abrirem para inundarem o trem de pernas, braços, perfumes e olhares quietos. Uma estudante chinesa com fones de ouvidos vermelhos preencheu a vista para a janela. Ela mascava chiclete. A alça da mochila esticava a gola da camisa e revelava a tatuagem abaixo da nuca “…and justice for all”. Senti vontade de comentar o escrito com a senhora grisalha abraçada na bolsa de nylon que assistia ao topetudo de óculos, sentado no banco preferencial, a ler “A Introdução ao Estudo do Direito”. Preferi não romper o silêncio do vagão. Acompanhei as cabeças bailarem no ritmo sacolejado do trem e desembarquei a três quadras do hospital. Na saída da estação, a chuva apressava os pedestres e armava sombrinhas. Desacelerei para sentir a água cair no rosto. Os pingos estalavam na pele trincada por quarenta e dois anos de exageros. Quarenta e dois anos de competição com Marlon. Quarenta e dois anos de uma vida morna, recheada de planos desgastados e frases não ditas. Parei na banca de revista. Cacei entre as capas das publicações uma manchete digna de atrasar o meu dever. A chuva lavava os tijolos do hospital. Oito andares de concreto armado fincados no barro da cidade. Oito andares de silenciosos e polidos assoalhos. Oito andares atentos a contar vidas e mortes. Junto ao gabinete do manobrista, um homem vestido com calça de abrigo tragava um cigarro sem tirar os olhos do chão. A porta de vidro se abriu para um casal sair. Há quarenta e dois anos, não existiam portas automáticas, nem tardes na creche contando os minutos para minha mãe me buscar, nem brinquedos quebrados por Marlon, nem cintadas do pai, nem discussões por aluguel atrasado, nem a manhã em que o pai apareceu em casa transpirando álcool e arremessou um copo contra a janela da cozinha e quebrou o braço da mãe e ficou nove anos sem nos procurar. Há quarenta e dois anos, não existia a possibilidade de eu repetir a oitava série pela segunda vez, nem as noites que a mãe chegou tarde do trabalho e me acordou para estudar trigonometria. Há quarenta e dois anos, não existia a festa surpresa que minha mãe fez quando completei dezoito anos, nem a mão ciumenta de Marlon a desmantelar o bolo enquanto cortava os pedaços. Há quarenta e dois anos, não existia a distância entre eu e meu irmão, que depois de adultos, nos falávamos apenas no Natal. Há quarenta e dois anos, não existia o retorno repentino do pai, nem o perdão da mãe, nem meu emprego na seguradora, nem casamento, nem filha, nem prestação do apartamento, nem o enterro do pai, nem o respirar cansado da mãe, nem obrigação ingrata de entrar no mesmo prédio onde eu nasci e assinar um papel sulfite que autorizaria a morte da única pessoa capaz de entender porque eu sempre fui um sujeito tão calado.

_______________________
Mauro Paz
 é escritor, publicitário e cineasta. Além da participação de diversas antologias, Mauro tem 3 livros publicados: Por Razões Desconhecidas (IELRS), finalista do Prêmio SESC de 2012; São Paulo – CidadExpressa (Editora Patuá); e do romance Entre Lembrar e Esquecer (Editora Patuá) finalista do Prêmio São Paulo de Literatura 2018.