PANDORA – JOSÉ SANTANA FILHO

Dos dois homens que conversam no balcão, apenas um vai despertar amanhã pela manhã. O outro foi morto horas depois, embora se encontre plenamente íntegro neste momento em que os flagramos de papo, os dois recostados no grande balcão de madeira deste bar numa zona boêmia da cidade. É certo que alguma coisa em sua postura o vulgariza, entretanto a vida incensa com fogos de artifício a vulgaridade, não havendo máculas nem indicativos do fim próximo. Por enquanto, o que temos é o encontro de dois homens em um bar no começo de uma noite fria no inverno de São Paulo. Ainda são poucos por aqui. Bernardo veste terno escuro, traz uma pedra vermelha no anelar direito e escorou o guarda-chuva no balcão, ignorando a chapeleira. Passou há pouco dos sessenta e permanece de cabeça baixa, desenhando pequenos círculos no ladrilho com o bico do sapato engraxado. Pediu um expresso e o espera esfriar. Laércio, vinte anos mais moço, calça sapatos surrados, tem a barba por fazer, veste um jeans gasto e camisa rota nos punhos, tudo leve demais para o tempo frio; desliza os dedos pela tulipa do chope pra cima e pra baixo, brincando de desembaçar o vidro. Bernardo toma a palavra e não se excede. Laércio o observa calado, não se manifesta, pouco contradiz e com nada se surpreende. Falam baixo, esses dois.

É quando entra o casal respingado de chuva. A mulher, jovem e bonita, inclina a cabeça para frente e movimenta os cabelos a fim de escorrê-los, chacoalhando as pontas com a mão direita a partir da nuca. Ele, igualmente jovem e bonito, fecha a porta de madeira atrás de si, se aproxima dela e a ajuda a despir o casaco. Depois, tira a jaqueta de couro verde-abacate e, dobrando as duas peças com displicência, os deixa em cima do balcão, ao seu lado. Laércio inspira o aroma do eucalipto, reparando nos ombros da mulher, ossudos e salpicados de sarna, gosta do que vê e sente. Por cima do ombro do acompanhante, ela também o observa com os grandes olhos pretos calafetados de rímel.

Fosse fotografia, seria sépia. Numa panorâmica, têm-se um bar espaçoso com mesas de madeira ocupando a maior parte do salão, onde o ladrilho se distribui em grandes losangos, brancos uns, pretos outros, alguns cinzas nas extremidades do salão. Três sofás de estamparias coloridas acompanham o alinhamento da parede. No menor deles, revestido de veludo grená, um homem gordo e calvo investe contra os lábios da mulher de meia idade muito risonha e bastante loura. Ela meio que se esquiva, sem proibir de todo o assédio. Os ventiladores de teto são antigos como os lustres de cristal, movimentando-se em velocidade suficiente apenas para fazer circular a fumaça dos cigarros, uma mulher de feições orientais fuma um charuto na ponta de lá do balcão.

Mais gente vai entrando, sexta-feira, final de expediente, ainda chove lá fora, e as taquicardias urbanas. A máquina de chope no centro do balcão abastece copos e tulipas, bandejas se equilibram na palma da mão aberta de garçons risonhos, aqui o cardápio, caipirinhas de lima e frutas vermelhas, uísque caubói, ostras no gelo, a noite afinal.

Este é o primeiro encontro entre Laércio e Bernardo. Bernardo evita fixar o rosto de Laércio, que, por sua vez, o examina em profundidade, desviando os olhos só de quando em quando.

– Afinal posso saber quem eu devo eliminar?

– É a mim que você deve eliminar.

Laércio tira o olho do colarinho do chope talvez espesso demais: – será que entendi direito?

– Espero que sim. Tive as melhores recomendações a seu respeito, não gostaria de estar iludido.

– Pelo contrário. Seu amigo Enrico Salvatore conhece a minha pegada.

– E a sua pontaria minuciosa. Este, o talento que de fato me interessa. Não gosto de selvageria e dispenso devastações 0a Tarantino, sou um esteta.

– Fique tranquilo. Bala e perfume francês uso apenas o necessário.

Bernardo agora pede um chope, erguem as tulipas, cruzam os olhos afinal e brindam à vida – talvez à morte. A súbita descontração encoraja Laércio: – Não me intrometo na intimidade dos clientes, mas o que levou o amigo a tomar essa decisão, a vida vai mal?

– Pelo contrário, nunca esteve tão bem. Apenas quero subverter os comandos, passando de criatura a criador. Não estou habituado a seguir ordens, o meu roteiro quem escreve sou eu.

São meias verdades. Além de algumas questões metafísicas, Bernardo se deparou com a desesperança. Os negócios vão bem, mas há muito não o estimulam. A esposa, Leonor, igualmente não o motiva mais. Apesar da dieta isenta de farinha branca, do botox e o silicone, evolui de mal a pior. O Junior faz trottoir em Paris, e o xodozinho da casa, Pat Alessandra, primeira da classe no Mackenzie, foi chefe de campanha do Russomano; para quê continuar vivendo?

Na verdade, Bernardo é um purista. Vivesse em Sidney ou Genebra faria sentido contratar o profissional. Em São Paulo, bastaria ganhar espaços públicos, de preferência desacompanhado, e suas chances de encontrar o que procura seriam enormes. Caso preferisse, e esteta como se proclama, poderia dispor do belo cenário carioca, a trinta e cinco minutos de voo, seria tiro e queda. Além do mais, Bernardo é um exímio atirador, não encontraria dificuldade em estilhaçar a própria carcaça de cálcio, fósforo, sódio e colágeno com um tiro pontual; não saía de casa sem o revólver na pasta, até devolvê-lo ao cofre do quarto, poucos dias atrás. Ok, a elite tem seus pruridos, idiossincrasias, vamos respeitar. Pagamento acertado, estenderam-se as mãos, Laércio vestiu o sobretudo preto, botou o gorro na cabeça, calçou uma única mão da luva de crochê lilás e saiu do bar, sumindo na noite molhada.

Bernardo sentou no banco alto e pediu um caubói duplo. Ao primeiro trago, lembrou de Leonor, com quem casou muito jovem, e sua eterna vocação para Poliana. Inicialmente Poliana-menina, depois moça, a seguir adulta, e agora Poliana-na-melhor-idade. Trepidou a cabeça numa náusea, a dose desceu rascante, sapecando o esterno por trás da gravata. Uma palma de mão linda e jovem pousou no ombro dele, pediu licença e tomou a escada rumo ao toalete, deixando um halo de eucalipto atrás de si. Apenas quando ela voltou, ele reconheceu a mulher que entrara acompanhada pelo moço de jaqueta de couro verde-abacate alguns minutos atrás. Num ímpeto, segurou-a pelo braço e perguntou, com a desfaçatez dos que já estão de posse da passagem para o lado de lá: – Você me diria o seu nome? – Pandora, mas se você me chamar de Dora eu atendo, ela disse, e seguiu ao encontro do rapaz, no outro canto do balcão. De lá, voltou o olho para ele, exibindo dentes de cálcio; o acompanhante, encarando-o também, sorriu uma fileira de marfins; nada mal para um sessentão, Bernardo exultou.

A vertente por onde a vida passa faz um eco inimaginável. Mal percebeu este minúsculo sinal de terra, nosso náufrago estica o braço a procura da tábua de misericórdia, é urgente desfazer o acordo com Laércio, a vida emerge do subterrâneo mar. Enrico Salvatore, que o indicou, deve saber onde encontrá-lo, Bernardo se desfez do contato tão logo marcaram o encontro de há pouco. Saca o celular, liga para o outro na Sicília, ninguém atende. Pensa em pedir para Leonor o telefone da casa de Enrico, a mulher é mais íntima do italiano do que ele próprio, mas decide esperar, ainda vai tentar o celular; as ligações de Enrico com a máfia siciliana o obrigam a sair de circulação de vez em quando. Lembra-se que da última vez que o viu, imaginou tê-lo flagrado em intimidades com Leonor na garagem de casa, mas a mulher o convenceu do contrário sem dificuldade.

Sentados em outros dois bancos de madeira circundando a pequena mesa redonda e quase flutuante de tão alta, o casal jovem o convida a se aproximar, elevando e dirigindo a ele a tulipa de cada um. Pensa de novo em Leonor, nunca a traiu, porém se encaminha com o copo na mão, porque tudo é incrível e a vida deu de se espreguiçar, movimentando-se em sua direção.

Bernardo, Pandora, João Antônio: Bê, Dora, Jã, muito prazer!

– Você costuma vir aqui?

– É a primeira vez.

– Que bobagem, Jã! Com essa carinha memorável, você acha que iríamos esquecer? – Pandora aperta o queixo de Bernardo entre o indicador e o polegar, sacudindo-o com delicadeza. Aí é que começa a ficar bom. Agora ele quer tudo, menos morrer, eles se divertem feito carneiros no pasto molhado, Bernardo não é feliz assim desde a compra daquele Sinca Chambor amarelo em 1961. Conversam sobre tudo: a temporada dela na Itália até nove dias atrás, o interesse de Jã pelo malabarismo e o violoncelo, as experiências pouco convencionais de Bernardo na juventude, Pandora sapeca um beijo em sua boca há muito muda de beijos, depois faz o mesmo na boca corada de João Antônio, eles morrem de rir. Bernardo consulta outra vez o celular, ninguém ligou de volta, nem sinal de Salvatore, o que equivale dizer: de Laércio tampouco.

O tempo escorre em areia de uma ampulheta avariada, tudo é vida que ruge. Ruge também o vento lá fora, se percebe pela porta de súbito aberta, fazendo entrar, além do vento, este retardatário ensopado, solitário e sorridente. O homem encosta a bengala numa mesa desocupada, acomoda o chapéu de feltro, desliza o dorso da mão pela testa molhada, a palma da outra pelo rosto, enxugando as duas no pulôver de losangos nos mesmos tons do ladrilho, por baixo do casaco cinza-chumbo. Este movimento parece deslocar o seu vasto bigode negro, que ele tratou de rapidamente trazer de volta para cima da boca, foi a impressão de Pandora, atraída pela sua chegada. Entretanto, Dora já bebeu o suficiente para fazer movimentar um bigode por ventura estático sobre lábios masculinos e sedutores assim. Percebendo a excitação da nova amiga, Bernardo pede outro caubói antes de se voltar para a porta e acompanhar o olhar da mulher, é o sexto drinque esta noite, que fígado tem este homem! Ela o encara de volta, tira a echarpe do pescoço, dirigindo-se agora a João Antônio, e este, como num passe ensaiado, caminha alguns metros e a oferece ao forasteiro para que seque as mãos, quem sabe ainda o rosto. O homem eleva o chapéu por um instante e os cumprimenta com um breve movimento de cabeça, capaz de sentir, de onde está, a mesma fragrância do eucalipto. Aproxima-se do balcão sem desviar a atenção dos três novamente reunidos em torno da mesa alta, e pede um chope antes que desliguem a máquina, há quem já passe um pano úmido por todo o mármore do balcão, no encosto de cadeiras e em algumas mesas vazias do salão. É ele agora quem repete o gesto executado pelo casal algum tempo atrás, quando os dois se dirigiram a Bernardo acenando-lhe com a tulipa, e, à exceção do próprio Bernardo, todos se cumprimentam com o olhar e as taças de chope suspensas varando mesas, cadeiras e bancos entre eles.

O forasteiro se encosta na parede ao lado da bengala, firmando-se no punho de metal. Bernardo se encaminha para o banheiro, a escada do lado oposto de onde o homem está. Pandora transfere de sua bolsa para a pasta de Bernardo a pistola dourada de cano curto, conforme lhe foi recomendado duas semanas atrás. O bar já vai fechar, o garçom amontoou as tulipas molhadas formando uma pilha, traz a conta e a máquina para o cartão de crédito, tudo por conta de Bernardo, ressuscitado antes mesmo de morrer. Uma rodada de brinde por honra da casa e saem os três de braços dados chutando as poças d’água, feito saltimbancos de circo ou adolescentes nos primeiros dias.

O homem de chapéu na cabeça, bigode e bengala se afasta da parede, cruza a porta e vai atrás, os olhos voltados para o asfalto onde respingam gotinhas diáfanas de chuva. Pandora percebe a vibração do celular na bolsa a tiracolo e se desvencilha dos rapazes para ver quem a procura neste horário. A poucos passos de onde estão, o homem que os segue tira a luva de crochê lilás do bolso do casaco e calça as duas mãos ocultando as digitais, esfriou ainda mais, o dia logo amanhece. Bernardo se volta num ímpeto e parece reconhecer este homem que se aproxima, deve tê-lo visto nesta mesma noite, inclusive. Abre o zíper da pasta em um gesto automático.

Pandora confere o nome no visor do celular: Enrico Salvatore.

 

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José Santana Filho nasceu em Balsas, no interior do Maranhão e mora em São Paulo desde 1982, quando se formou em Medicina. Psiquiatra e psicoterapeuta, tem se dedicado também à literatura nos últimos anos. Publicou O Rio Que Corre Estrelas (2012), seu livro de estréia, e a coletânea de contos O Beijinho e Outros Crimes Delicados (2013), pela Editora Terracota. A Casa das Marionetes (2015), finalista do Prêmio São Paulo de Literatura na categoria romance do ano, e Flor de Algodão (2017), romance semi-finalista do Prêmio Oceanos, saíram pela Editora Reformatório. Em 2017 participou como palestrante do programa Viagem Literária, promovido pela Secretaria de Cultura do Estado de SP, da FliCristina, Feira Literária de Cristina MG, e Flipoços, Feira Nacional do Livro de Poços de Caldas. Faz parte do grupo de produção e discussão literária Clube das Três, onde, além de atividade acadêmica, promove-se encontros com autores de literatura contemporânea.