e se olho o canto da parede
algo dos circulares da madeira
me olha de volta
há alguém em casa no cimento inerte
cinco dos nossos dedos abrindo-se
subitamente como as patas de uma aranha
ou como as garras e os sentidos de uma iguana
subitamente, agora, ligados por membranas
entre elas, subitamente, submarino
entre as gotas da garoa
da cidade respirando pelas guelras
carvão e intestinos
mas também, plantados selvagens pelos canteiros
bebês divinos das mais diversas denominações
nas corredeiras alegres das enchentes
fim do mundo pelas águas
atrasado apenas pelas arcas de juncos
e as possibilidades
de que cada geração seja o pior de si
apenas por engolir o pior e passar algo
como mandioca brava mas bem mastigada
para estas crianças que brincam de pique sobre as águas
que cospem o pó das estrelas e de Akhenaton
por sobre seus cachimbos de craque
minha vó teve 14 filhos
e passou uns 10 anos da sua vida grávida
velha
esvaziadas minhas veias
velha, das pernas fracas
sustentadas pelo alumínio enferrujado
de uma cadeira
esvaziadas as veias do suco
do limo nutritivo
caçadora de borboletas potenciais nos céus
encarnadas com força na célula certa
esgotada, rata velha sem relâmpago nas pernas
de presas longas, estupidamente cegas
veias vazadas alargadas
por máquinas agrícolas de mil toneladas
murcha nos peitos e entre as pernas
esvaziada do sangue ralo já menos
vermelho carmim
quente de rubis e mucosas juvenis
fogo de cobre
brasa de fornalha de fole
um sangue estancado, já cansado de correr
por uma encanação corroída, oxidada
sangue já vazado e entupindo os rasgos abertos
e coagulados
velha, abrindo-se uma vez mais
no meio desse território árido
últimas gotas do oásis
disso que já foi tão rico estuário
para tantas e tantos animais
desaguo-me aberta e desapareço
leveza veloz
velha evaporada.
chorar
são tantos
fins
tantos fracassos
que as veias dos meus olhos
viraram mapa hidrográfico
de rios secos
me empresta, mãe,
seus olhos
comidos por verme
para que eu
possa
chorar.
poema para um iletrado
isso que eu preciso te dizer
mas não sei falar
e ridícula escrevo em poema
que vai passar pelos seus olhos
como as cinzas da cidade
no máximo incomodando como cisco
sem o conselho que me angustia
e que preciso urgentemente te dar
para te evitar tanto sofrimento
e dor futura
a cada verso ridícula
tentando apontar AOS GRITOS
esse abismo já tão perto dos seus passos
essa sombra já tão grande sobre suas costas
enquanto você sorridente, saudável
confiando na justiça das coisas
e nas próprias forças
eu aqui, assistindo a tudo muda
escrevendo pela milésima vez
essas palavras que te passam irrelevantes pelos olhos
que eu entrego aos mensageiros
mais diligentes, mais incansáveis, mais invisíveis
e você, com o cálice de veneno já nos lábios,
negligência como se fosse uma propaganda no rádio
o ronronar de um gato
o balbucio de um criança
essas palavras, meu filho, para te apontar
um caminho justo, luminoso, arejado
como uma estrada aberta
cujo caminho a todo momento
sem nem saber
você ameaça para sempre
abandonar.
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Tomaz Amorim Izabel, 30, é poeta e doutor em teoria literária pela USP. É de Poá, cidadezinha na grande São Paulo. Já traduziu trabalhos de Franz Kafka e Walt Whitman. Publicou em 2018 seu livro de estréia, Plástico pluma, pela editora Urutau. Três dos quatro poemas são inéditos em publicações, já o poema “chorar” integra a obra Plástico pluma.