SOLANO – DEA CONTI

“A morte é uma transação solitária”. Foi assim que o conheci. Ele murmurou entre dentes a frase que eu sabia constar no livro de mesmo nome de Ray Bradbury. Estávamos sentados lado a lado no balcão da padaria Palma de Ouro, no fim de uma tarde de sábado – ou era domingo? – e eu tomava café enquanto buscava sugestão para um filme no caderno de cultura do jornal que eu acabara de comprar. Por conhecer a novela de Bradbury, ergui os olhos da programação cultural e me fixei em sua pessoa.

Ele se encontrava perfilado, com os dois cotovelos fincados sobre o balcão, enquanto as mãos seguravam a cabeça arqueada para a frente.  O cabelo grisalho, ralo e visivelmente sujo espalhava-se em cachos desordenados, que há muito não viam tesoura. Reparei nos dedos, longos e finos, a pele de um amarelo esmaecido e as unhas carcomidas. Sentindo-se observado, ele virou a cabeça em minha direção, mal dando tempo para que eu desviasse o olhar carregado de indiscrição. Voltei a examinar a lista de filmes, tentando me concentrar.

“Amaro, o de sempre.” O pedido, feito em voz grave e rouca, foi acompanhado de um estalar de dedos. “Há um esqueleto dentro de você, vinte e quatro horas do dia.” Levantei a cabeça e vi que se dirigia a mim. “Como se sente em relação a isso?” Sob seus olhos, de um azul desbotado, duas imensas bolsas penduradas lhe davam aparência de cansaço e desânimo. “Um esqueleto dentro de você”, insistiu ele. “Ray Bradbury”, respondi, “Ele tem um conto sobre o pavor de um homem em relação a seu próprio esqueleto. Menciona esse conto em A Morte é Uma Transação Solitária”. Pela primeira vez vi seu sorriso largo, que exibia dentes enormes e mal cuidados, amarelados de nicotina e café. Soltou um breve “ah!” e voltou-se para o balcão, onde Amaro acabara de colocar o café curto e um prato de sobremesa com duas metades de pão francês, generosamente besuntadas com manteiga.

Eu havia levantado e estava me preparando para pedir a conta, pois já decidira por um filme em cartaz no Reserva Cultural, quando ele se dirigiu a mim em tom imperioso: “Senta!”. Diante de minha reação de surpresa, mudou a inflexão da voz, suavizou o olhar e pediu que eu ficasse mais um pouco. “Amaro, traga mais dois cafés”. Cedi e me sentei novamente.

“Você não respondeu à minha pergunta.” Lembrei-me do esqueleto dentro de mim vinte e quatro horas do dia. “A morte é algo intrínseco a tudo que está vivo”, respondi, “Mas não dedico a ela muitas horas de minha vida, até porque tenho uma visão sartreana da morte: embora seja natural, é algo que me acode de fora, porque sou enquanto estou viva.” “Ah!”, repetiu ele, e virou-se para pegar a xícara de café trazida por Amaro. Sorveu vagarosamente o primeiro gole, sacou um cigarro no bolso da jaqueta de jeans e o aspirou profundamente, sem acendê-lo. “Pois eu não consigo esquecer o esqueleto dentro de mim”.

Magro, muito magro, estava metido em calça e jaqueta de jeans surrado,  camiseta branca com gola puída, e no tênis desgastado observava-se algumas manchas de tinta colorida. “Desde muito cedo a morte me assombra. Tinha nove anos quando perdi meu pai, morto numa briga por causa de uma mulher que não era minha mãe. Lembro do corpo dele estendido no caixão em cima da mesa da sala de nossa casa – ele estava tão sozinho. Lembro do cheiro das flores murchas, mortas, misturado ao cheiro das velas acesas e de café requentado. A boca do meu pai estava levemente aberta e vi dentes de caveira. O rosto do meu pai não era o rosto do meu pai, era uma caveira.”

O café havia esfriado quando tomou o último gole. Aspirou mais uma vez o cigarro apagado, com os olhos fixos no espelho da parede interna ao balcão. “Olho no espelho e vejo meu esqueleto. Não suporto espelhos.” Levantou-se bruscamente e saiu sem se despedir. “Ele sempre faz isso, mas é boa gente” acudiu Amaro, cuja presença discreta testemunhara toda a conversa, “De vez em quando traz um livro para mim”. Ele abanou a cabeça e recolheu as xícaras vazias, enquanto passava um pano com álcool no balcão.

Solano, era seu nome. Solano era artista plástico, como fiquei sabendo dois ou três dias depois daquela nossa conversa, quando nos reencontramos na padaria. Morava nos fundos de uma casa na Bela Vista, espaço apertado em que às duras penas conseguira instalar uma cama, uma estante com livros, uma arara em que pendurava suas poucas peças de roupa, um frigobar e uma bancada, sobre a qual acomodava os materiais utilizados em suas telas. Trabalhava ao ar livre, de preferência em praças e parques, justamente por carecer de espaço em seu quarto. Nesses momentos aproveitava para vender um ou outro trabalho já pronto. “Agora só pinto o que as pessoas gostam”, disse-me um dia, “Preciso do dinheiro”.

Quando nos reencontramos pela segunda vez, ele me deu um livro, Algo Sinistro Vem Por Aí, de Ray Bradbury. Solano tinha costume de presentear livros, furtados em livrarias e sebos, me contou tempos depois. “Não fazem falta a ninguém, não dá grande prejuízo, só alegria a quem os recebe”. Além de Bradbury, era comum vê-lo com autores como Philip K. Dick, Arthur C. Clarke e Robert A. Heinlein. Tinha predileção por ficção-científica. E por conversas sobre a morte, que temia acima de tudo em função da solidão que a envolvia. Foram quase três anos de encontros fortuitos, embora houvesse alguma previsibilidade em dar com ele sentado diante do balcão da padaria nos fins de tarde. E a despeito de sabermos quase nada sobre a vida pessoal um do outro, nos tornamos amigos.

Naquele último ano fiz uma viagem e fiquei três meses afastada de São Paulo. Quando retornei, logo na primeira semana fui à padaria com o intuito de ver Solano. Eu havia comprado O Livro do Juízo Final de Connie Willis, que acabara de ser lançado no Brasil, e queria lhe dar de presente antes que ele mesmo o providenciasse. Solano estava sentado na ponta do balcão, seu lugar predileto, pois ali não havia espelho que refletisse sua imagem. Eu o avistei tão logo entrei na padaria, pois embora ele estivesse de costas e distante o jeans surrado e o cabelo grisalho todo desordenado não deixavam dúvida sobre ser ele aquela figura.

“Solano”, avisei para não assustá-lo quando lhe tocasse o ombro. Ele estava absorto na leitura do jornal e retardou em alguns segundos a reação. Quando virou-se em minha direção tive que conter o espanto causado por sua aparência. Solano, que já era muito magro, havia emagrecido violentamente. Os olhos azuis encontravam-se afundados nas duas cavidades do crânio em contraponto às sobrancelhas projetadas para a frente. A pele fina e seca parecia não ter carnes por baixo, estava esticada e recobria toda a face pondo em evidência o nariz saliente e os malares. Ele estava com aspecto cadavérico.

“Ah! Finalmente minha amiga voltou!”, disse enquanto se lançava num abraço caloroso. “Sente-se. Amaro, nosso café de sempre. No capricho!” e estalou os dedos. Ele examinou lenta e detidamente minha aparência. “Você está ótima. Mais bonita e muito mais saudável.” Eu ainda estava me recuperando do susto. Sorri. “Feliz por ver você. Trouxe-lhe um presente. Espero que ainda não tenha.” Entreguei a Connie Willis e o riso largo descobriu-lhe os dentes. “Ah! Ah!”, comemorou ao mesmo tempo em que iniciava a exploração do livro. Era prazeroso vê-lo entretido naquela tarefa.

Amaro trouxe o café e passamos o resto do tempo falando dos livros que havíamos lido naqueles três meses e um pouco sobre os lugares que eu havia visitado. “Você fez falta. Não é, Amaro? Fez falta nossa amiga.” Amaro acenou sorridente atrás da chapa, sobre a qual montava dois sanduíches. “Você reparou, não é? Vi em seus olhos. Ele está tomando conta do meu corpo. Está vindo para fora. O esqueleto.” Olhou para as mãos, enquanto as movimentava de um lado para o outro. “Veja. Sobre ele apenas a pele.” Voltou-se para mim e sorriu com tristeza. “Falta pouco.” Abanou a cabeça e antes que eu dissesse qualquer coisa, levantou-se e foi embora.

Foi a última vez que vi Solano.


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Dea Conti é natural da cidade de Sorocaba, estado de São Paulo. Licenciada e mestre em Filosofia pela Universidade de São Paulo, trabalhou 22 anos como professora de Filosofia. Escreve crônicas, contos e artigos analíticos, publicados em redes sociais e revistas virtuais.