I – “Um homem e um espelho”
lembro de ter ouvido dizer algo sobre alma despenada
– des-penada…
– empenada – o homem corrigiu. – uma alma que anda assim… na diagonal. inclinadamente
desconhecia até que uma alma precisava de andar. já ‘inclinadamente’ pareceu-me muito adequado ao movimento da alma
– então o senhor já viu um alma ‘empenada’?
– não se trata de ver
– mas é possível ver uma alma assim, inclinada?
o homem assumiu uma expressão dura que não teve – digo eu – a intenção de me recriminar. trazia em si, apenas, uma compacta seriedade
– é possível ver, sim. a mim, por exemplo, basta-me um espelho. e o meu próprio par de olhos.
II. “o espelho depois do homem”
– adeus – disse a mulher, lentamente, e sorrindo e arrastando o corpo nu para a água quente do chuveiro onde eu entraria dali a exactos vinte e três minutos para só encontrar vapor, água e o intenso odor do sabonete de canela caído e submerso a um canto da água, assim pude vê-lo e tê-lo na mão
para o aproximar da narina esquerda – a única que ainda funciona, mas isso é uma outra estória –, e sentir entre as frestas do sabão o cheiro da pele da mulher, o cheiro-madrugada, o cheiro dos seus dedos hirtos, o cheiro da última vez que roçou o sexo depois de me ter roçado no sexo depois de ter roçado a sua língua e me ter dito – agora, sim, lembro e quase entendo o que a pessoa quis dizer
– sempre que faço amor e me olho ao espelho… desapareço um bocadinho.
III. “o homem após o espelho”
cheguei a casa e fazia madrugada, abri as portas que davam para a varanda, busquei a lua
que não vi
mas a lua não precisa de ser vista para estar no seu lugar
voltei a lembrar-me da expressão ‘alma empenada’, quis poder lembrar do grau de inclinação que empena uma alma e ocorreu-me que me faltavam elementos
o espelho
sim, era possível e até tinha conhecimento da sua localização, a pessoa, podia ser eu e desconfio bem que, nesse momento, também sabia da minha localização, fiz um esforço e concluí que era o meu próprio par de olhos que fazia falta à lista dos necessários elementos e eles lá estavam, é bem verdade, pendurados no rosto
sendo que
eu
um homem diante de um espelho, segundo aquele homem, estaria pronto para verificar a condição binária (sim/não) de me encontrar perante a minha própria alma empenada
era essa a dúvida que haveria de me perseguir por tantos anos mais, conquanto eu
um homem defronte a um espelho
(mesmo) dispondo de um par de olhos
– como direi?… –
não podia ver.
e era isso.
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Ondjaki nasceu em Luanda, em 1977. Prosador e poeta, também escreve para cinema e teatro. Co-realizou um documentário sobre a cidade de Luanda (“Oxalá cresçam pitangas – histórias de Luanda”, 2006). É membro da União dos Escritores Angolanos, membro honorário da Associação de Poetas Húngaros e membro fundador mas não permanente da Associação Protectora do Anonimato dos Gambuzinos. Está traduzido para francês, espanhol, italiano, alemão, inglês, sérvio, sueco, chinês, swahili e polaco.