UMA PRECIOSIDADE OBSCURA

COLUNA PITACOS 

POR LETICIA SANTOS

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Hoje eu vim falar sobre um livro que foge do meu repertório normal de leitura. Geralmente não leio horror, mas fiquei curiosa ao ler a sinopse de Bile Negra, de Oscar Nestarez, afinal, seria a melancolia um monstro a ser combatido? Não me arrependi da escolha de ceder a esse intrigante argumento.

Devem-se lembrar que em Amores Urbanos eu disse que há obras que não podem ser dissociadas da cidade onde a narrativa se passa, que o local deixa de ser pano de fundo e ganha destaque na explanação. É o que acontece em Bile Negra, pelo menos na primeira parte, onde São Paulo é uma estrela brilhante.

Comecemos pelo fato de que Vex, o protagonista tradutor em franco momento de fragilidade física e emocional, narra em primeira pessoa seu cotidiano nessa cidade, e ele se move pelas ruas, ônibus e trens nos passando uma imagem de São Paulo que se equipara ao amor reverente que Mário de Andrade tinha, ainda que aqui não tenhamos aquele bairrismo desmedido. A cidade que nos é mostrada através dos olhos de Vex muda de acordo com seus humores, e a vemos cair de radiante e aconchegante para opressora e pesada de acordo com a evolução do personagem.

Logo de cara somos confrontados com o fato de que Vex está passando pela recuperação de um evento tão traumático que o fez ter um colapso e se afastar de todos os seus amigos, o vemos buscando ajuda com uma psiquiatra linha dura que o impulsiona (não muito delicadamente), a ver a realidade. No momento em que ele está na sala de espera já podemos discernir que sua mente não é exatamente o local mais organizado do mundo, o que automaticamente ligou meu alerta para narradores não confiáveis, mas, apesar de seus problemas, Vex é incrivelmente racional. Sim, eu disse que o narrador em tratamento psiquiátrico com devaneios alucinógenos é incrivelmente racional, e por quê? Porque ele tem perfeita noção que suas visões e divagações não fariam o menor sentido fora de sua mente, e não ajuda que sua psiquiatra antipática (nota-se meu amor por ela?) o tenha ridicularizado quando tentou expressar-se.

Acompanhamos seu mal-estar ao não poder comunicar-se adequadamente com ninguém sobre suas inquietações, a solidão em uma multidão é o pior tipo, não é? Buscando sua normalidade de volta, Vex retorna para seu grupo de amigos, que estavam visivelmente felizes por conseguirem se reunir com ele, que os tinha preocupado e afastado. E, mais uma vez, essa saída com os amigos não serve apenas para marcar uma fase otimista para o tradutor, mas também mostra de novo um morador típico de São Paulo indo para um bar com os amigos, finalmente contando para eles alguns de seus problemas, levando o grupo de uma maneira geral a uma conversa franca, regada a vodka.

Também foi nessa noite de embriaguez e alegria que Vex voltou a reencontrar com San, a mulher que descobrimos ser um antigo fascínio de sua vida, sem jamais deixar de ser amiga, a postura dos dois na relação é algo refrescante, já que apesar dela ter tido relações com mais de um homem do grupo, todos conseguem lidar com o fato depois de reflexões, sem crises de ciúmes, ainda que tenham regras não ditas sobre comentar a relação atual e passada. É interessante ver como a relação dos dois evolui num curto espaço de tempo quando compreendem que sofrem de inquietações semelhantes, e ele tem a noção de que a mulher com quem se relacionou amigável e amorosamente entre idas e vindas, é tão vulnerável quanto ele para enfrentar os fantasmas que rodeiam a mente. O encaixe dos dois se torna perfeito a partir do momento em que se permitem mostrar seu lado mais obscuro, e é bonito e doloroso ver como a vulnerabilidade de ambos pode proporcionar-lhes chegar a um novo patamar na relação, ao mesmo tempo em que os expõe de maneira tão perigosa à dominação da escuridão – já que é evidente que mesmo que desejem apoiar-se, suas escuridões se alimentam uma da outra.

Na primeira metade do livro, fui levada a uma inquietante preocupação por Vex, suas visões e suas narrativas acerca dos olhos escurecidos e escaras das pessoas. A hesitação entre acreditar no que ele via ou descartar como alucinação é algo presente no começo do livro, afinal, como apenas ele poderia ver essas coisas? E mesmo quando San começa a dividir seus próprios demônios, preferi creditar isso ao fato de os dois estarem passando por momentos delicados. A verdade é que, em termos gerais, sempre buscamos explicações lógicas, já que uma manifestação física de males mentais seria realmente assustadora.

Bile Negra, não é só o título do livro em questão, mas também de um livro que Vex começa a ler/traduzir logo depois de sua volta ao grupo de amigos e tentativa de retorno a uma vida normal. Trata-se de um tratado de um autor obscuro sobre a Teoria Humoral, e de como funciona a bile negra nas pessoas. Grigora, o autor do tratado é envolto em um misticismo digno de líder de seita, o que me deixou mais desconfiada ainda do envolvimento de Vex no projeto, mas, por incrível que pareça, o livro ajudou a clarificar muita coisa depois que acontecimentos bizarros o levaram a finalmente entender que os olhos escurecidos e a sombra que via nas pessoas não eram alucinações, eram uma manifestação física e perturbadora de pessoas perdendo o controle para suas emoções negativas e caóticas.

Se na sinopse do livro foi mencionada uma epidemia, a sucessão de acontecimentos na narrativa, que nos mostram diversos ataques e mais pessoas vendo o que Vex vê, foram como socos no estômago já que não ocorriam com estranhos na rua e ocorreram em momentos em que ele estava esperançoso do futuro.

Depois de uma série de golpes que acabaram com sua bolha de serenidade duramente construída, Vex se vê numa situação insustentável, em que a preocupação com as pessoas que ama se mistura com a certeza de que ficar no mesmo ambiente em que essa epidemia acontece poderia custar-lhe a mente.

“A São Paulo ensolarada e sem vento era uma São Paulo mais adensada, urgente, barulhenta, o que apenas acelerava meu sangue e acentuava a sensação de que um cataclismo não tardaria muito a dizimar tudo aquilo.”

Está aí, de novo a cidade combinando com o estado de espírito do nosso protagonista. Não é que o concreto de São Paulo o oprimisse, mas a percepção dele da cidade mudava de acordo com os humores, podemos inclusive pensar que se a bile negra se acumulava nas veias das pessoas causando distúrbios horríveis, as ruas da cidade também eram artérias entupidas de gente tóxica.

É nesse momento que Vex resolve sair da cidade e no melhor estilo de road trip, com um de seus amigos, busca refúgio na casa de seu avô, um local cheio de significado e lembranças felizes para ele, um sinônimo de segurança mais que qualquer coisa. Nota-se o esforço dele para buscar um local que considera não ter sido exposto ao mal que maculava o resto do mundo, e em sua viagem rumo ao interior, vemos como seu esforço para fugir da nuvem negra que cobria São Paulo o leva apenas para uma jornada onde enfrenta novamente o pior dos seres humanos, vendo que muitos ao seu redor cediam à escuridão que ele lutava tanto para controlar.

Claramente, não vou dizer-lhes a que essa jornada levou, mas posso dizer que o autor amarrou de forma notável essa narrativa, terminei o livro com os olhos arregalados, porque, definitivamente fazia todo o sentido terminar da maneira que ocorreu, ainda que não recomende esse livro para pessoas com o coração fraco. Em última análise, Bile Negra me serviu como uma reflexão sobre os monstros escondidos nas mentes das pessoas, o quanto de melancolia acumulada ao longo da vida uma pessoa pode aguentar? Leiam esse livro, é uma preciosidade obscura.