Como um cão alucinado
Por Susanna Busato
Esta orelha, como queiram, é muito mais que uma dobra ou um canto de contracapa, para onde os olhos vão quando invadem o livro. Esta orelha é uma escuta à voz do poeta que se expressa como palavra na alucinação do dia, buscando um lugar no fio telefônico dos postes, para estabelecer contato com a sua escuta, leitor. De orelha a orelha, a voz do poeta procura percorrer um espaço no campo aberto dos sentidos, que se nutrem do coloquialismo e da simplicidade da expressão para se verem livres e reivindicarem o que talvez a vida não possa: o hiato “entre o prato de feijão e o café coado”. Esse “entre”, esse intervalo que habita as coisas, ilude a transitoriedade da vida, para rasgar nela o verbo e, com o próprio poema, dizer tudo que sente diante de um “tempo mudo” e daquilo que falta.
Alucinar-se é lançar-se sem medo em meio às palavras todas e delas sugar o que o mundo oferece como prato feito e indigesto. E dos restos, nos versos que nascem, o desvairismo se alimenta. O poeta à escuta elabora, então, a sua cicuta.
Até onde vai a poesia hoje mergulhar para sentir-se viva na loucura de um mundo sem que o amor desbote ou coce o nariz diante de um “software de paisagens belas”? O amor, na poesia de Daniel, existe e sonha: “É a liberdade querida”. Parece que mesmo diante dos cães, imagem da distopia que irá percorrer o início e boa parte da obra, “todo mundo tem um clichê no coração”, como lemos neste livro. Diante da aparição do Amor, tudo se encanta e se reveste de cores e seres terreno-celestes. “Para voltar não tem hora / Tá chovendo lá fora”: os versos de “Aparição” me arriscam dizer que o romantismo, neste livro de Daniel, invade o sujeito alucinado porque a saída estaria no olho torto do Amor, que ainda resiste nesse mundo nada confortável que nos abriga, nesse mundo canino de cuja saliva o poeta ironicamente destila seus agentes políticos. O livro de Daniel Perroni Ratto uiva como um louco; seu “delírio é de estimação, é o cercado das lavras / Da vontade de existir”. Eis aquele que ama, como todo poeta, ainda, como um cão alucinado.
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Os poemas a seguir foram escolhidos pelo autor para uma degustação da obra:
A aparição
Diva
é diva!
É musa
é mulher parida
É a liberdade querida
Quero embarcar
no teu veleiro
mais profano
Quero teu tesão
mais louco
e viajar pelo gozo
em todos os planos
O amor nos faz lembrar
daquele beijo na boca
dos desejos mais ousados
dos olhares hipnotizantes
Visão no azul do mar
campos belos
onde golfinhos sempre em par
pulam belos
Para voltar
não tem hora
Tá chovendo
lá fora
A noite chegou
vamos dançar
até o sol raiar
Fontes luminosas jorram lantejoulas futuristas
Diluições noturnas
de odores brutos
em faces mudas
Olhavam entre frestas
Dois caras estavam na picape
passaram pelo cemitério lotado
enquanto o motorista acendia um cigarro
as pessoas se matavam aos milhões
Diversas confusões num instante passado
da descoberta de outro plano existencial
o escape às novas portas das alucinações
Sim,
vivemos uma distopia,
um mundo orweliano,
onde a novilíngua está
em nosso cotidiano
e o crimideia ou crime
de pensamento,
tornou-se realidade.
As porongas acessas pela cidade
todos temos que passar pela nuvem
cinza prateada fronteira da morte
Eu acho que não haverá uma viagem
de volta quando o grande olho ao norte
apontar sua luz, mas esse dia não é hoje
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Daniel Perroni Ratto é poeta, jornalista, músico e editor da Algaroba. O seu quinto livro, Alucinação, com lançamento marcado para 11/12/2018, já encontra-se em pré-venda.
Orelha: Susanna Busato é doutora em Letras pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho, Mestre em Comunicação e Semiótica, pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Tem pós-doutorado em Linguística (Semiótica) pela Universidade de São Paulo e atua como professora da Unesp de São José do Rio Preto. Poeta, publicou o livro de poemas Corpos em cena (Patuá, 2013), finalista do Prêmio Jabuti em 2014. Seus interesses recentes de pesquisa centram-se nas relações entre poesia e espaço urbano, com ênfase na poesia brasileira moderna e contemporânea.