|COLUNA LORCA
Por Charles Berndt
Gostaria, hoje, de partilhar com a amiga e o amigo leitor, alguns singelos versos, alguns poemas, escritos por mim em noites desassossegadas, em que o sono era pouco e escrever parecia ser a única coisa a se fazer para abrandar a mente e o espírito. São pequenos ecos, monólogos, frutos das minhas conversas mentais com Garcia Lorca, Fernando Pessoa, Drummond e Florbela Espanca.
[…]
Repara:
ermas de melodia e conceito
elas se refugiaram na noite, as palavras.
Ainda úmidas e impregnadas de sono,
rolam num rio difícil e se transformam em desprezo.
– Carlos Drummond de Andrade.
TU
no meu coração tu passeias
corres na areia
mergulhas e te banhas
andorinha
por causa de ti
em mim não há inverno
só verão
e dias assim
tão
tão azuis.
II
MERGULHO
medusas
brilhantes
gigantes
do pacífico
a brilhar no mais profundo azul
estrelas distantes
fluídicas
pelágicas
da galáxia oceânica
anãs marrons, vermelhas, amarelas, gigantes azuis
movem-se, caem
flutuam à superfície
à borda do seu universo
e morrem
secam
desaparecem
mas não sem antes queimar a mão de algum miúdo
medusas
brilhantes
água viva
e água morta
são como nós
seus corpos desaparecem
como se nunca tivessem existido
III
ANTARES
en la noche
estrellada
el alacrón
indicaba
el camiño torto
de la estrella roja
qué ilumina
mi corazón perpetuo
IV
DA NOITE
en la noche
oscura
de muchas palabras
y pocas caras
nada tiene más sentido
que una estrela
que cae
V
A DANÇA DOS CONTRÁRIOS
Dentro do dia mais ensolarado
existe a noite, o breu,
a face iluminada de Apolo
esconde o rosto sinistro de Dionísio.
Dentro da calma,
dentro do monge,
está o caos, a perfídia,
o corpo luxuriante a desafiar a alma.
Dentro da paz, infelizmente,
há sempre uma ameaça de guerra
a colocar nossas vidas e nossos filhos sob a terra.
Dentro da desolação,
dentro de Aleppo,
há uma promessa de esperança,
o por vir, a alegria das crianças,
vivas, sem fome, sem gás nem explosão.
Dentro da pior das madrugadas,
de sangue ou apatia,
existe a presença do dia claro,
da manhã de luz que trará conforto
e ânimo aos nossos corações amargurados.
VI
INSÔNIA
no silêncio fino da madrugada
no suspiro fundo de um corpo adormecido
no pio horrendo de uma coruja
no latido perdido de um cão
na página interminável de um livro
na sombra de uma mariposa
na lâmpada queimada
no relógio atrasado
no travesseiro desassossegado
no vidro partido
na folha da bananeira a balançar com o vento
no mar lá longe cantando baixinho
a procura de um verso
a palavra fugidia
etérea
fugaz
prurido
mistura de ambrosia e liberdade
rosto indefinível
parede fria
voz impossível
antevejo um caminho aceso de neurônios
que parecem vaga-lumes
em romaria
uma rua
sozinha
poesia.
VII
THANATOS E HYPNOS
E quando enfim
no meio da noite que se arrasta quieta
e cautelosa
o cobertor de tranquilidade
é posto sobre os seus pés
os dois sentem finalmente
que podem
entregar-se
ao sono de paz que imita a morte
sonhando vida e amor.
_______________________
Ilustração: Federico Garcia Lorca