SOB O INSTANTE, FAÇAMOS A NOSSA MORADA – LAÍS ARARUNA DE AQUINO

INDIVÍDUO N. 3 (OU A FESTA DO VAZIO)

então retornas ao mesmo tema
que faz um homem entre demasiados homens,
existência entre existências refluindo sobre si

um homem, aberto ao tédio e aos desertos,
cujo ser, de tanto contemplar,
não imolou a própria vertigem
até o som da lira ou do asco crepitar

e a sua existência –
este incêndio da face destituída ao espelho,
tão breve como a pulsão da aurora
ao encontro da noite fria

as tardes não te darão nada, meu filho,
a não ser a hora demasiado tardia de caminhos esgotados
ou o fundo vazio de estações indivisas
que te convidam a morrer no azul

é inútil assim ir como permanecer
exaurido no homem antes de ti
mas, se vais, escolhe o longo caminho
fora dos portos conhecidos,
propícios aos naufrágios dentro de si

no limiar da noite esquiva, entre esquinas mal iluminadas de astros,
a chama ausente do satélite inundará o teu ser
com um chamado lúbrico para o abandono
na vasta planície onde cantam as sereias do nada

mas não te afogues em aporias
deixa que o sopro do absoluto –
isto que ainda tens de uma infância –
dê-te o fôlego, mas não a chave inútil

não há portas
todas as construções ruíram
mas sob a tua soleira – a do teu ser –
o vento continua a rugir

o vento – ou as vozes que conjuras
na festa do vazio

 

AS MEMÓRIAS INVISÍVEIS

caminhas pelas estradas polvorentas da tua memória
recebes o vento pelas costas
algum sopro veio do mediterrâneo e tem a secura do deserto
pessoas cruzam e desaparecem para nunca mais
estás sob o sol asfixiante de junho à esquina da Calle Evangelista
ou passeias no Luxemburgo sob um guarda-chuva chinês
foi este ano ou o passado ou uma década atrás
(agora já contas as décadas)
mas os nomes traem as coisas
falta-lhes o excesso a mancha a impureza
os nomes têm a textura derruída da ausência
e a sua lâmina, uma ponta cega encardida pelo tempo
a Rua da Aurora no começo de uma tarde em agosto
não é a Rua da Aurora no começo de uma tarde em agosto
é também o teu ser precário sobre o Capiberibe veloz
e os quadros e arcos das pontes na extensão do azul
sem os nomes as coisas dormem no lago universal
do esquecimento e misturando-se às águas e às algas
destituem-se pouco a pouco como as margens de um rio
tragadas pela correnteza
chamá-las porém não lhes devolveria a face
(vulto que se perdeu ao virar a esquina)
cada coisa porém guarda o seu secreto nome
sob a arquitetura inviolável de um momento extinto

a poesia é – talvez – a tentativa de construir
para esse nome – uma esfinge à luz do dia

 

GRAMÁTICA DA NOITE

A noite desce inescrutável
as estrelas são efígies destituídas de rosto
no vento, sopram signos diáfanos,
arredios como serpentes não encantadas
em todo o horizonte, amontoa-se o espólio
da ausência, essa forma que toma
o que foi e o que não será e jaz
na vala entre as coisas circundantes e teu corpo
(na soleira do ser,
a vigência do nada espreita)
entre sombras sem substância,
o pensamento divaga como um bote
cujo laço foi rompido
mas, desde que a vida se recusou imaginada,
o drama se deslocou para trás do palco,
entre mecanismos e metalinguagem
o corcel trôpego do teu espírito
encontra espelhos que conduzem
ao claustro na noite larga
é preciso retornar à planície
dos fatos e dos homens, tendo acima os caminhos aéreos
que as correntes frias e as andorinhas traçam
sim, é preciso sempre retornar das torres
onde a loucura se refugia,
onde toda voz é um eco,
e o vento é um látego que fustiga
escuta o uivo doce das palmeiras,
o orvalho nascendo sobre as pétalas da grama,
sem esperar de deus o canto
os pilares da noite suportam todo o vazio,
deixando-te os ombros para o pouso
de mãos tênues e pássaros
desde que caíste no irremediável,
estás destinado ao nunca mais
abandona-te a este ofício –
respiras, logo dissipas
este sopro breve de vida
mas, sob a asa lépida do instante,
faz – demoradamente – a tua morada

 

ODE À MANHÃ

a manhã levanta do horizonte
tenho vontade de escrever e a cabeça não dói
está nublado e chove um pouco como se
deus molhasse as pontas secas
do coração entrincheirado da véspera

ontem quando olhei o céu estrelado
só pude ver o vazio na cavidade do meu peito
mas a manhã veio como uma certeza e uma novidade
agora a água cessou, um hino se inicia
os pássaros dão glória e se lançam no azul

deus abre e fecha a sua obra
ou são os homens que esquecem a criação?
ao poeta cabe apanhar a luz do ser
e dar-lhe o cristal do nome, onde a imagem fulgura
e deixa-se permanecer como um estremecimento –
compete atentar para a anunciação,
os raios do sol quebrando numa geometria
concreta sobre a folhagem,

e deixar que a nossa alma se encha
de alegria ao crepúsculo, ao refluxo das águas
ou à chegada do sono após a exaustão
às vezes, lembramos nossos corpos imperfeitos
e sentimos exalar a tristeza da finitude
mas damos graças – ou deveríamos dar –

por ter acontecido de estarmos aqui
como um lampejo entre os dias e a noite,
entre um afeto e uma cicatriz,
entre Sêneca e Walser,
as flores do campo e o estio,
sendo por tudo tocados nesta alternância
e a tudo tocando

aconteceu de estarmos aqui,
neste instante fecundo,
salvo para sempre porque votado ao esquecimento e ao fim –
ao invés de vagarmos anonimamente e sem rumo
como a poeira eterna do universo

 

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Laís Araruna de Aquino nasceu em 1988, no Recife, onde vive. É autora de Juventude (Ed. Reformatório, 2018), ganhador do Prêmio Maraã de Poesia 2017.