GEZUS – ALEXANDRE WILLER

nascido de uma fenda suburbana onde o marginal é algo além do dicionário social, ele voltaria como leão e não cordeiro, mas alguém não atualizou o gps e ele teve de driblar um aborto e pré-natal precário além de uma fome que da última vez desconhecera ainda no ventre vigem da mãe.

esta aliás não era mais pura que isso é coisa de inventar e, antes dele, já tinha posto no mundo outros dois quando veio aquele anjo que, surpreso, lhe anunciou o terceiro. ela fez pouco, afinal, quem acredita em anjo certamente não deve ter nascido naquela quebrada e disse ao anjo que onde iam dois, três iam do mesmo jeito.

veio ao mundo antes da data programada, sem ajuda que o hospital estava era cheio e para achar a saída teve de lutar muito, talvez por isso o leão veio mirrado, sem jeito, tímido e chorou feito um miado fraco quando se esperava uma trombeta do além.

o leite materno já não era lá essas coisas, uma água rala que apenas lhe atiçava a fome e seu choro era antes isso que anúncio de grandes feitos. cresceu correndo atrás dos anos e quando foi para o registro, a mãe queria jesus e o escriba lhe atendeu mas grafou gezus e como para ela jesus é jesus independente da ortografia, aceitou o pequeno messias que também não se queixou.

já menino dizia aí umas asneiras e voltava para casa com o nariz sangrando onde a mãe lhe dizia para deixar dessas coisas de filho de deus e de ser metido a besta, que isso era problema e que ele brincasse como os outros meninos, ele retrucava mas a chinela cantava e lhe calava o bico.

chegou a arriscar uns milagres mas eles saíam tortos, talvez pela fome que não se aplacava em seu estômago ou pelo pouco caso que lhe faziam, certa vez ressuscitou um pardal mas todos riram alto falando que isso era fácil, queriam era ver ele trazer de volta os pais que há muito não eram vivos ou mortos, ele não entendeu e voltou de novo com arranhões pra casa onde a mãe lhe cortou de novo para ele aprender a deixar de ser tonto.

quando foi pra escola, não tardou em ter a mãe chamada, o menino era estranho, não falava coisa com coisa e retrucava, talvez fosse melhor levar a um especialista, medicar, as coisas iam bem em casa? cansada, aos safanões levou o moleque para ver um doutor que lhe disse que poderia ser algo mais grave, exames e tomografias, esperas, nada de anormal, devia ser algum distúrbio, vamos medicar.

lhe puseram nos remédios e ele não mais sabia se era mesmo filho de deus ou filho da puta, se fazia milagres ou apenas o imaginava, na rua era troçado por todos que iam atrás dele imitando e tirando barato, a mãe se condoía e lhe entupia de mimos e o que pudesse lhe dar. às vezes na igreja, o pegava falando com os santos e chorava, mas pensava que antes com os santos do que com gente errada, se era seu fardo ela ia suportar.

já adolescente ele parecia ter melhorado, saiu dos remédios e a mãe acreditava que poderia ter futuro dele e com ele, quem sabe, algo mais promissor, voltou a estudar mas antes de ser algo que desse dinheiro, se meteu com filosofia e essas coisas de pensar, nada de futuro.

deixou o cabelo crescer, passou a usar sandálias e uma bermuda surrada com uma camiseta que um dia conhecera a cor branca, isso a pedido da mãe que aos prantos lhe pediu que usasse isso ao invés da túnica com a qual apareceu um dia em casa, lhe disse que bastava de desgosto e que ele ao menos respeitasse a sua vontade de mãe ante a qual cedeu mesmo que a contragosto.

virou piada no bairro, pregava nas praças e vielas, a mãe ainda achava melhor que outra coisa mas lamentava a ausência de futuro, era chamada da mãe de gezus na rua, na feira, no mercado, não ligava, melhor que mãe de filho morto ou preso, mal ele não estava fazendo, só às vezes vinham reclamar na porta que ele estava causando tumulto nos bailes ou atrapalhando o comércio local com suas frases desconexas.

apareceu um dia com uns amigos em casa, todos iguais a ele e ela tremeu, estava indo pelo caminho errado que eram uns maconheiros com certeza, pôs a todos pra fora e lhe passou um pito homérico, ele disse que ia sair de casa e ela disse que fosse porque ali não era lugar de maconheiro e ele foi.

já se iam anos quando ela foi chamada à porta por um pm, gelou no coração e as pernas viraram água, mas o oficial lhe tranquilizou, que fosse até o distrito para falar do filho, preso estava mas nada demais, nada de droga, só perturbar a ordem pública.

ela foi, o encontrou barbado e com o mesmo ar de menino ainda que mais de trinta anos já lhe fossem às costas, chorou quando o viu, trazia seus irmãos que dele pouco faziam, ele segurou em suas mãos e lhe disse que aqueles eram seus filhos e que aquela era a mãe deles, ela sabia que ele não deveria ter largado os remédios, correu ao delegado e contou tudo, que o doutor tivesse entendimento que era um moço doente, que a deixasse buscar ajuda ou o pusesse em algum lugar pra gente doente da cabeça.

talvez por estar perto do natal, o delegado viu a mãe já se arcando sob o peso da maternidade e amoleceu, que ela o levasse para a casa não podia ser, ele já vinha admoestando o moço há tempos, não dava para passar mais a mão mas, ia providenciar que ele fosse internado assim que passassem as festas, lavava as mãos depois disso.

ela agradeceu e foi dizer ao filho no cárcere, ele veio de novo com aquelas histórias de deus e missão e tal, ela chorou e os irmão lhe olharam com desprezo e ódio, não tinha vergonha de a fazer sofrer assim?

na data certa, foi levado à instituição, ainda tentou lutar e argumentar mas não lhe deram ouvidos, disse que precisava purgar o mundo e julgar o ímpios, que os mortos esperavam seu julgamento para ressuscitar e foi levado para a cela isolada por funcionários que riam e aquiesciam.

na primeira visita, a mãe o encontra de túnica, e com uma coroa de papelão na cabeça, não fala coisa com coisa e uma baba escorre pelos lados da boca, ela chora e se prostra em sua frente, ele a benze e diz que seus pecados estão perdoados, os médicos lamentam mas não há muito o que fazer salvo manter a medicação, que ele é inofensivo e já viram casos como o dele, são fixações, a mente cria ilusões, é um mistério, a medicina ainda conhece pouco da mente humana.

ela se resigna, ao menos ali ele estava sendo bem tratado, sim, o tratavam da melhor forma possível, vai se despedir e ele a benze de novo, ela chora e ele lhe diz que tudo bem, da primeira vez também ninguém sabia direito o que estava fazendo…

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Alexandre Willer é autor do volume de contos Maré Vazante e outras estórias e, atualmente, prepara seu segundo livro, Nunca mais voltei, que será lançado em 2019. Participou das coletâneas Homossilábicas, Cem anos de Amor, Loucura e Morte e GOLPE: Antologia Manifesto, além de outros projetos e iniciativas literárias. É cinéfilo, ama música e também é fotógrafo amador.