Sociedade diabólica
O maligno saltou e dançou feito espantalho
No meio das avenidas desertas
Porque o gentio partiu para partes incertas
Transportando a esperança para diferentes geografias
Esperando sobreviver a inevitáveis paralisias
Traçando nova postura e diferente rota
A justiça pariu um rato morto fedorento
E os sofistas oportunistas dos esgotos de meias verdades
Debitam enredos de carrascos e vítimas
Como o teatro trágico que apresenta máscara torta
Compra-se o silêncio no reino dos homens
Faz-se pacto da queima das raízes
Para que nenhum ser se erga em direção ao sol
O medo desenha mapas onde se esconde a cobardia
E a mente ergue barreiras obscuras de arame farpado
As lagartas rastejam procurando aberturas
Envenenando os mais incautos ignorantes de armadilhas
As luras das ratazanas minam as fundações das casas arruinadas
Dividindo criaturas esquartejando as bocas revoltadas
Não se faz a manutenção dos alicerces
Apenas se dá prioridade aos enfeites
De prevenção a mão humana não se muniu
E em desespero dos desprevenidos a ponte de ligação ruiu
Gratidão
As ações escondem os ímpetos dos medos e as variantes dos soluços
Onde a esperteza do diabo da Tasmânia arrasta as crias
E prepara o terreno para rasgar as vísceras dos rebanhos
Mal orientados por um lobo com disfarce de cordeiro
Surgindo a palavra oca sem sentido ignorante sem agradecer
Porque a criatura glacial e calculista sofre de limitações sem se aperceber
A tolerância ausenta-se para o plano virtual do esquecimento
Os abraços transformam-se em apertos de anaconda constritora
E o pássaro que devia ser alado bem tratado e amado
Refugia-se no estado de amnésia sem ter a ideia de obrigado
A gratidão é espezinhada entre quatro paredes
E o que resta é a criatura irada que pontapeia certeira
Os que não obedecem à sua patológica cavaqueira
Enlouquecida permanece foragida apenas e sempre
Na mortal ornamentação esquecendo-se da genuína celebração
Os beijos ficaram aprisionados nas gargantas inflamadas
O discurso de alegria e plenitude altera-se
Em gritos de escarros em uivos de fera ferida
Com vontade de aniquilar tudo e todos os seres julgados inferiores
E esmurrar até com despeito a própria madrasta em que se tornou a vida
Carrego uma carga preciosa que tenho de entregar
Diretamente no coração dos tresloucados
De cérebros apertados que mordem a mão que lhes dá o pão
Tatuados pela ausência de um amor genuíno
A gratidão que acalento gera a rebentação dos botões das rosas
Planta árvores generosas mesmo no deserto sem alento
Semeia campos de cereais alimentando os famintos
Porque a atração pela existência carece de carinho e envolvimento
Geometria emocional
Há uma floresta densa e verdejante que me perpassa o corpo
Amadurecido por entre os pantanais do alheamento
Enquanto o atordoamento me abana a nudez e me faz expulsar o grito
Pela garganta ferida ardendo até ao âmago do ser projetado no firmamento
Esta selva onde me agito consome os membros cansados
Que pedem o epílogo na serenidade de um lago azul
E o suor que se arrasta na corrente de um ribeiro
São lágrimas que alimentam lírios roxos que se abrem ao sol
Dispo-me milhentas vezes dos trapos enquanto os farrapos
Esvoaçam nas janelas das casas abandonadas
Onde outrora viveram seres felizes e animais domésticos
Que se estendiam calaceiros sobre a erva
Na sombra generosa dos pomares por onde se abriam raios poéticos
Agora o pó sobrevive ao tempo dos camaleões
Enquanto os ossos se desfazem sob a terra enrijecida
Pelo calor do barro ressequido e atordoa o ser demente
Baralham-se o antes e o depois e as laranjeiras revoltam-se
Contra os chupistas que esbanjam o sumo e destroem a semente
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Ana Maria Oliveira, nasceu no Alentejo, Portugal, em 1960. É licenciada em Filosofia, pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Editou dois livros de poesia. “Grito de liberdade” em 2008 e “Espírito Guerreiro” em 2014. Participou em algumas coletâneas e publicou em várias revistas online portuguesas e brasileiras.