ESCRITORXS DE QUINTA
Por Camilo Gomide
Tenho uma dificuldade tremenda para começar textos. Tenho, também, uma inclinação suspeita a exagerar a intensidade das coisas, de modo que a primeira versão deste parágrafo começa com: “Sofro horrivelmente para começar um texto”, o que é uma verdade (parcial, mas uma verdade). Passei algum tempo pensando, mais ou menos angustiado, sobre o que escrever nesta que é minha coluna de estreia no espaço dxs Escritorxs de Quinta, gentilmente cedido pela Vício Velho.
Em um desses momentos de aflição pré-escrita, em que fico andando de um lado pro outro pela casa, procurando tarefas que precisam ser executadas, mas que, por não serem prioritárias, acabam sendo insólitas (como cortar as unhas, fazer a barba ou espremer uma espinha), vi duas saídas. A primeira delas seria ir direto ao ponto e tratar do assunto de minha pesquisa acadêmica, algo que poderia ser brutamente resumido como: “as relações entre sinceridade, realidade e ficção na literatura contemporânea”. A outra opção é este caminho torto, entre o ensaio e a crônica, que estou seguindo na esperança de não matar ninguém de tédio e de chegar a alguns lugares.
Gosto muito dos escritores que seguem essa trilha e falam sobre os mais variados aspectos do cotidiano, sobre as coisas mais banais, sobre tudo o que parece insignificante, como cortar as unhas, fazer a barba e espremer espinhas. Há muito tempo venho perdendo o interesse por literaturas eloquentes, de tramas intrincadas, cheias de reviravoltas, fantasias, mundos e universos paralelos, e/ou trabalhos grandiosos de linguagem.
José Saramago, em um prefácio ao Valter Hugo Mãe, elogiou o autor dizendo que a escrita de Mãe é como um Nilo fertilizando a linguagem. Um amigo meu, certa vez, comentando esse comentário do Saramago, disse que, como leitor, ele se sente afogado toda vez que entra nesse rio caudaloso que é a obra de Valter Hugo Mãe. Quem sou eu, eu sei, mas tenho a mesma sensação.
O caminho de uma linguagem menos trabalhada, por assim dizer, pode parecer mais fácil, mas não é. Aliás, ser mais fácil ou mais difícil é uma falsa questão. Tampouco estou fazendo um juízo de valor (reconheço a qualidade de Valter Hugo Mãe, li trechos belíssimos de Homens imprudentemente poéticos, mas, no geral, não me atrai). Me interessa mais pensar sobre as razões de ser dessa linguagem que prefere ser mais literal do que literária.
Uma das principais perguntas que surge desse questionamento é: por que uma parcela tão significativa de escritores e de leitores tem se interessado tanto por uma literatura mais voltada pra “vida como ela é”, ou seja, mais realista, em um mundo em que a noção de verdade absoluta caiu por terra. O realismo histórico deve muito à ideia de que é possível retratar a realidade fidedignamente, em toda a sua complexidade, de maneira, supostamente, isenta. Há muito tempo sabemos que essa possibilidade é uma falácia. A literatura, como qualquer outra linguagem, é apenas um discurso e, como todo discurso, é capaz, apenas, de aludir ao real, jamais o alcançar em sua totalidade[1].
Isso tudo pode soar óbvio, mas qualquer um pode perceber que diferenciar o que é real do que não é, não é das tarefas mais simples hoje em dia. Tenho a sensação de que qualquer coisa vista ou lida na internet, por mais absurda que seja, pode ser verdadeira. Tudo é verossímil e, ao mesmo tempo, a realidade parece incrivelmente inverossímil. Desconfio de tudo ao mesmo tempo em que acredito que tudo é possível.
Confesso que a essa altura do texto estou um pouco confuso. Dei muitas voltas, literalmente, até chegar a esses sete parágrafos. Levantei inúmeras vezes para beber água e, consequentemente, outras tantas para ir ao banheiro. Fiz café. Tomei iogurte. Conferi as conversas nos grupos de WhatsApp (ato contínuo, chequei no Google a grafia de WhatsApp). Joguei uma partida de FIFA 18 (eu sei…). Como minha pele estava muito oleosa e uma espinha interna apareceu no limiar entre a barba e a maçã do rosto (do lado direito), lavei o rosto. Sinto que preciso escrever muito ainda para chegar onde eu gostaria. Não vai dar. Enfim, é sempre assim.
Não tenho uma resposta satisfatória pra nenhuma das perguntas levantadas até agora. De vez em quando, uma ideia aparentemente epifânica surge e sou tomado por uma euforia pretensiosa, a sensação de que serei capaz de explicar um desses grandes problemas da humanidade nas próximas linhas. Mas é só escrever que passa. Tem sido assim há três anos. Escrevi uma dissertação inteira assim. Cheia de citações, frases de efeito e afirmações categóricas. Funcionou (tirei dez e fui aplaudido de pé pela plateia formada, exclusivamente, pelos meus familiares e amigos mais queridos).
A verdade é que essa coluna de estreia é uma coisa muito importante pra mim e eu queria causar uma grande impressão, mas deixei pra última hora, pra variar, e, bom, aí, já viu… Minha noiva acaba de chegar em casa perguntando se eu já reduzi o pacote da TV a cabo, eu disse que ainda não, porque tinha que escrever esse texto e não tive tempo, o que, bom, é parcialmente verdade. Que fique bem claro: ela está coberta de razão, a gente precisa mesmo economizar. Estamos num momento bem atribulado da nossa vida (nada que envolva a relação), precisando resolver um monte de coisas de ordem prática (reforma no banheiro, mudança de apartamento, reserva e compras de passagens para a lua de mel etc).
Acho que foi o Knausgård que disse, certa vez, que uma das coisas que mais o fascina na vida é a coexistência entre Heidegger e uma pilha de louça suja. “Estamos a maior parte do tempo absortos em nossa realidade cotidiana, com nossos afazeres mundanos, mas, assim que nos livramos dos pratos na pia, podemos alcançar um livro de Heidegger na estante e acessar um mundo completamente diferente”[2], teria dito o norueguês. Concordo plenamente.
Knausgård, aliás, é o autor que me parece ter ido mais longe no desenvolvimento dessa vontade contemporânea por “realidade”. Coloco a realidade entre aspas porque, como já demonstramos, é assim mesmo, não tem jeito. Digo “vontade” porque seria impreciso falar em uma nova escola realista, ao que tudo indica, é mais uma tendência mesmo. Além disso, há muitas propostas de realismo contemporâneo com estratégias bem diversas entre si. Há um certo consenso entre estudiosos da área de que existe um apetite geral por realidade[3]. A julgar pelo volume de reality shows na TV, programas de auditório, coberturas jornalísticas em tempo real, biografias, autobiografias, autoficções, diários, blogs, digital influencers, instagramers, youtubers etc, estamos certos.
É evidente que a maioria esmagadora dessas narrativas sobre “a vida como ela é” passa longe de entregar o que promete. Qualquer pessoa com uma conta no Instagram sabe (ou deveria saber) disso. É contra esse verniz do real que parte dos escritores realistas contemporâneos escrevem. Percebe-se em parte desses autores um esforço para se diferenciar dessa linguagem midiática pretensamente realista[4].
As estratégias desses “novos ‘novos realistas’” (como os chamou o crítico literário Karl Erik Schøllhammer) é diferente das utilizadas pelo realismo clássico. O real aqui não surge mais pela simples denotação de objetos comuns do dia a dia, tampouco pela verossimilhança. O realismo na literatura contemporânea surge, segundo Schøllhammer, pela via dos afetos (bons ou ruins). Dito de outra forma: uma obra é realista a medida que consegue provocar no leitor sentimentos e percepções que reverberam como o real.
É nesse sentido que acredito que Karl Ove Knausgård tenha sido o autor mais bem sucedido em larga escala, até agora, tanto pelo reconhecimento do público, quanto o da crítica, quanto o meu. Antes de publicar a obra que o consagraria, a série de romances autobiográficos Minha Luta, Knausgård era um escritor de ficção “convencional”. Havia publicado dois romances, um deles sobre a história dos anjos, e era percebido como um jovem autor promissor em seu país, a Noruega.
O que o fez saltar de patamar como autor foi escrever uma obra de mais de três mil páginas sobre a própria vida, na qual ele devassa a própria intimidade e a de seus familiares e narra detalhadamente as ações de seu cotidiano. Até aí, nada de novo no front, o que o diferencia como escritor é ter pegado o receituário de um blog e dado um tratamento literário (não fosse por essa abordagem estética, Minha Luta seria, como afirmou o crítico William Deresiewicz, uma “selfie gigante”[5]).
Knausgård, o homem dentro do livro, é um narrador atento ao mundo a sua volta, um sujeito que se auto investiga e se questiona como tantos narradores da tradição literária. É, também, um escritor em crise que descreve um esgotamento com a ficção e busca uma nova maneira de se expressar. Em diferentes momentos da série, o narrador discorre sobre seu mal-estar com as formas narrativas do presente, como no trecho a seguir:
“Eu lia e pensava, isso tudo foi inventado. Talvez fosse porque estivéssemos completamente rodeados por ficções e narrativas. Aquilo tinha inflacionado. Não importava para onde olhássemos, sempre encontrávamos ficção. Todos esses milhões de livros pocket, livros em capa dura, filmes em DVD e séries de televisão, tudo dizia respeito a pessoas inventadas num mundo verossímil, mas também inventado. E as notícias do jornal e as notícias da televisão e as notícias do rádio tinham exatamente o mesmo formato, os documentários tinham o mesmo formato, também eram narrativas, e assim não fazia diferença nenhuma se a narrativa que contavam tivesse acontecido de verdade ou não. Havia uma crise, eu sentia em cada parte do meu corpo, algo saturado, como banha de porco, se espalhava em nossa consciência, porque o cerne de toda essa ficção, verdadeiro ou não, era a semelhança, e o fato de que a distância mantida em relação à realidade era constante. Ou seja, a consciência via sempre o mesmo. E esse mesmo, que era o mundo, estava sendo produzido em série[6]”.
A tese central do narrador é que vivemos em um mundo saturado de imagens onde nos desconectamos, cada vez mais, da experiência do real. Na bolha virtual da infosfera[7] perdemos o contato com o mundo físico, o que é o mesmo que dizer que vivemos em um mundo de aparências. É por isso que Knausgård se dedica por páginas e páginas a descrever árvores, pedras, rios, garrafas, sapatos, o céu. O narrador, em suas próprias palavras, deseja resgatar a “fisicalidade das coisas”, mas sabe que só pode fazer isso através da linguagem, ou seja, o que Knausgård faz, conscientemente, em Minha Luta, é “combater ficção com ficção”[8].
Outro aspecto muito importante do realismo de Knausgård é a crueza de seu autorretrato. Se, como propôs Deresiewicz, Minha Luta é uma “selfie gigante”, é preciso admitir que é uma selfie fora do padrão. Não há nada de lisonjeiro no retrato que o autor faz de si. O efeito de honestidade é uma das sensações mais potentes do relato. É importante destacar que essa honestidade é do narrador, não do cidadão Karl Ove Knausgård (o escritor, a propósito, já comentou que seu melhor amigo diz que ele, pessoalmente, é muito pior do que sua persona literária). Não quero dizer com isso que a obra seja desonesta, pelo contrário: Knausgård, o narrador, é um sujeito que tira a própria máscara, mesmo entendendo que existe uma outra máscara por baixo. É no ato performático do desmascaramento que podemos ver, mesmo que de relance, a face real desse sujeito[9].
Há muito a dizer ainda sobre “as relações entre sinceridade, realidade e ficção na literatura contemporânea”. Gostaria de falar sobre outros assuntos, também, mas sinto que já falei demais por hoje. Além disso, preciso lidar com os pratos do jantar de ontem para, quem sabe depois, conseguir ler um pouco mais de um livro do Agamben sobre o que é o real.
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Camilo Gomide é jornalista, mestre em Literatura e Crítica Literária pela PUC-SP e escritor.
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[1] Essa ideia foi amplamente trabalhada por autores como Barthes e uma enormidade de filósofos e psicanalistas.
[2] Não foi exatamente assim que ele disse, mas ele realmente falou algo nesse sentido, só não lembro onde.
[3] O crítico literário Karl Erik Schøllhammer desenvolve bem essa ideia em Ficção brasileira contemporânea (Civilização Brasileira, 2009).
[4] Idem.
[6] Karl Ove Knausgård, Um outro amor: minha luta 2. Trad. de Guilherme Braga. São Paulo: Companhia das Letras, 2014, p.556.
[7] Conceito criado pelo filósofo da informação Luciano Floridi para descrever o complexo espaço global criado na sociedade da informação do século 21, com todas as suas tecnologias e relações. É possível se aprofundar no assunto no livro: The fourth revolution: how the infosphere is reshaping human reality, sem tradução para o português.
[8] Karl Ove Knausgård, A morte do pai: minha luta 1. Trad. Leonardo Pinto Silva. São Paulo: Companhia das Letras, 2013, p. 258.
[9] A ideia do gesto do desmascaramento como possibilidade de acesso ao real é de Alan Badiou, em Em busca do real perdido (Autêntica, 2017).