|ESCRITORXS DE QUINTA
Por Liliane Prata
Vira e mexe, vejo alguém comentando sobre a importância do hábito da leitura. Um autor ou autora num artigo analisando “o Brasil que não lê”. Um adulto bem intencionado orientando uma criança ou adolescente. Uma mãe, um pai, uma tia, um professor. Eu também penso que ler livros é importante. Mas confesso que escondo isso da minha filha. Acho que a importância do hábito de leitura poderia ser um segredo, um carinhoso acordo tácito entre os leitores, jamais alardeado numa prova, num sermão, num cartaz, jamais confinado em olhos sérios e vigilantes.
Temos, cada um de nós, uma série de coisas importantes para fazer nos nossos dias: usar cinto de segurança, não exagerar na comida e no álcool, pagar os boletos, ir ao dentista uma vez por ano, usar preservativo, ser minimamente educado mesmo quando não estamos a fim… Tudo isso é importante para a chamada “qualidade de vida”. Tudo isso é chato. Entendo que é um acinte colocar a leitura no mesmo pacote disso tudo.
Ter amigos é importante, afirmam os provérbios, os psicólogos preocupados com a solidão do mundo contemporâneo, os pesquisadores de Harvard nos vídeos do TED. Mas quem aqui tem amigo porque ter amigos é importante? Amar, sem dúvida, é importante. Talvez seja a coisa mais importante do mundo. Adoro citar esta frase do autor uruguaio Mario Levrero: “Nada é real. Só o amor e a morte, mas sobre a morte não estou tão certo”. Já vi um monte de pesquisas falando sobre a importância do amor, já ouviram falar daquele livro “Quem ama não adoece”? Pois é. Mas quem mergulha em um relacionamento amoroso decidido a fortalecer o sistema imunológico? Imagine um jovem apaixonado ansioso por uma mensagem do namorado/namorada. Espero que o motivo de sua ansiedade não seja baixar os níveis de cortisol do seu organismo.
Não é a importância da “pausa na correria da vida moderna” que me anima a contemplar o pôr do sol. Não é a importância de cultivar um “vínculo de qualidade” com minha filha que me faz enchê-la de beijos quando ela acorda. O jovem apaixonado quer aquela mensagem, deseja aquele telefonema, anseia por ela. Aquela mensagem vai fazer bem a ele. Ler é importante, concordo. Mas não é por isso que eu leio.
Ler é bom. É gostoso. Me eleva. Me desafia. Me conforta. Me desconforta. É motivo de desejo e ansiedade: que leitor nunca teve a experiência de chegar em casa louco para pegar o livro que estava lendo antes de fazer qualquer coisa? Que leitora nunca se espantou com a suspensão do tempo proporcionada por uma poesia? Que leitora nunca foi tomada por várias espécies de lampejos internos ao encontrar uma frase, um parágrafo, um pensamento, uma metáfora que se conectou com suas vivências, seus aprendizados, sua jornada? Que leitor nunca foi alegremente contrariado por um trecho que expandiu seu campo de visão, que o lançou para longe do familiar, que fez com que ele repensasse sua lógica? Que leitor nunca tomou o susto de ver o mundo diferente após uma leitura? Que leitor nunca teve a alegria de uma passagem de texto se referir exatamente a algo que ele carregava, sem saber que carregava, dentro de si mesmo?
Ler livros pode ser importante, mas não é isso que atrairá não leitores para os livros, na minha opinião. Sobretudo em um país como o nosso, com o índice de analfabetismo funcional nas alturas. Mais vale espalhar por aí que ler pode acolher, entreter, nos transportar para outra ordem de contato com a existência, pode descansar, pode nos cansar com um cansaço bom, pode nos confortar quando precisamos de conforto, pode nos tirar da zona de conforto, irrigar nossas paisagens interiores muito mais que outras três cervejas tomadas, outra blusinha comprada, outra meia hora lendo a esmo comentários de um post no Facebook.
Blusas, cafés, Facebook, tenho tudo isso no meu dia, mas é a leitura de um livro que escolhi para me acompanhar, e não as blusas, a cafeína ou as tretas na internet, que alarga meu dia, que amplia minha sensação de estar viva. “Um livro é um amigo”: que os leitores que dizem que ler é importante não se envergonhem de espalhar essa obviedade por aí. Às vezes, tenho para mim que andamos nos esquecendo de algumas obviedades e nos constrangendo por outras tantas. Não vamos nos constranger por espalhar que o livro é um amigo às vezes carinhoso, às vezes um amigo que só faz rir e falar besteiras, às vezes um amigo cheio de coisas a dizer, que nos tira do lugar em que estamos. Não vamos censurar ninguém por conviver com diferentes perfis de amigos, ou, ainda, por ter amigos de que não gostamos. Já somos achatados por tantos trancamentos e distâncias. Que cada um seja livre para eleger seus amigos, para se aproximar de suas almas afins naquele momento de vida. Pra que criticar, censurar quem lê livros diferentes dos seus, superproteger o já tão asfixiado livro numa redoma, ter no livro (mais) um marcador de diferença em um país como o Brasil?
No meu entendimento, mais vale apresentar um livro-amigo para aquela pessoa que ainda não tem intimidade com os livros. A amizade florescerá se a pessoa quiser, sentir-se convocada para aquelas páginas naquele momento de vida, ter vontade de visitá-las e ser visitada por elas. Leitor, minha sugestão é que você não tente ajudar o não leitor discorrendo sobre a importância da leitura. Ajudar é, muitas vezes, um verbo autoritário. Melhor do que ajudar o não leitor talvez seja acolhê-lo, incluí-lo, encorajá-lo. Ler é importante, mas convencer os outros disso não é o que mais importa. Ainda bem.
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Liliane Prata é escritora e jornalista. Entre seus livros, estão Sem Rumo e O Novo Mundo de Muriel (Planeta). Mantém o canal da Lili, onde fala sobre comportamento.
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