Dizem que os deuses não sabem o que é sofrer, por isso fumo às escondidas, como se o cigarro fosse o meu melhor amigo, ou o verdadeiro amor que levei trinta e três anos para encontrar, enfim olhar nos seus olhos, seu corpo liso, a pele morena, os músculos que eu quis ter sobre o meu dorso, sonolentos, iguais aos anjos de cachinhos nas pinturas, ou como a luz deste abajur sempre apagado, mas pronto para iluminar a escuridão do quarto quando eu precise – é duro não estar sozinho, imaginar aquele jantar em que não disse a palavra certa, soar inteligente, bonito, interessante; afinal as pessoas preferem olhar para o outro lado, como se os indivíduos, ali sorridentes, não fossem pessoas ou objetos com vidas pulsantes, meros adereços: uma mesa, doze cadeiras, o quadro de Cristo na parede, as vontades escondidas que elas renegam nos próprios leitos arenosos de seus rios. Eu não queria pensar assim, abrir esta cortina, o cigarro que finalmente se esvai, ou a inspiração que descasco no peito como uma cebola, quando assisti a entrevista da escritora que, por décadas, nunca foi lida. Falam mal sobre a inspiração que, segundo os magníficos estudiosos, paira numa nebulosa de inconsistência. O meu sofrimento é por ela, a escritora, e por cada um de nós que me diz, também às escondidas, que preciso tomar banho e lutar contra a preguiça do calor equatorial estonteante, abrasador, que me revela nas cartas escritas (nos olhos dos homens) que eles têm medo, eles têm quase tudo, têm um desinteresse profundo pela leitura deste texto automático, esquivo, açucarado demais às mentes mais práticas. Mas enquanto cruzo as pernas, mamãe se aproxima com os cabelos molhados, dizendo que não é nada interessante deitar-se com os cabelos úmidos. Mas mamãe, eu te digo, lembro das historias de minha tia e do casamento ao meio-dia, grávida de mim, enquanto chovia e todos na igreja pareciam tristes. Grávida aos quatro meses e separada aos oito meses. Mamãe. Um mês após, nasci: rebento comprido demais naquele hospital onde você corria nua, sentindo muita dor e eu não sinto vergonha. Jamais sentirei vergonha. Guardo na memoria a sinceridade deste relato livre sobre gavetas lacradas. Os anos se passaram neste apartamento de paredes amarelas e azuis. Aos poucos, o nosso felino, como terceiro membro da família, vai perdendo cada uma de suas presas. Com cara de poucos amigos, ele busca um lugar confortável para dormir o sono infrutífero dos gatos. Penso nele enquanto o observo. Sobre a pia, os cremes contra o envelhecimento precoce. E também água micelar L´Oreal Paris, protetor solar, creme ao redor dos olhos, máscaras de argila, soluções cremosas cujo elemento principal é o pepino. Mas eu sei que os deuses não sabem o que é sofrer. Os quatro meses de gravidez, os oito meses, a separação, o nascimento, os cabelos molhados de mamãe, os meus braços, fumar às escondidas. Dou-lhe um beijo na cabeça enquanto ela prepara fígado para o almoço. Questiono como cada convidado triste se portará diante da vida em 2020, 2021, 2022, 2023. Seguiram seus rumos, porventura comentam em segredo sobre o casamento que, ah, um detalhe: teve o almoço antes da cerimônia.
_______________________
Antônio LaCarne (1983) é cearense, autor de Salão Chinês (Patuá, 2014), Todos os poemas são loucos (Gueto Editorial, 2017) e Exercícios de Fixação (AR Publisher, 2018). Participou das antologias A polêmica vida do amor (Oito e meio, 2011), A nossos pés (7Letras, 2017), Golpe: antologia-manifesto (Nosotros Editorial, 2017). Alguns de seus poemas já foram traduzidos em publicações na Colômbia e na Grécia. Assina o blog O Impenetrável . Contato: antonio.lacarne@gmail.com