Eu tinha vinte e sete anos e meu sonho era conhecer a Europa. Determinada, juntei dinheiro de trabalhos freelance, fiz uma carteirinha internacional de estudante e comprei um voo promocional da VASP São Paulo-Bruxelas, passes de trem com desconto e um mochilão. Seria a grande viagem da minha vida, e sozinha. O voo estava barato porque chegava no dia 31 de dezembro. Tudo era mais difícil nos anos 90, e fiz uma ligação caríssima para Londres reservando um albergue para garantir uma hospedagem naquela data. Achei a dica numa revista de viagem. A matéria dizia ‘Londres a preços módicos’. Módicos não eram, mas eu não podia pagar um hotel. Tracei um roteiro e comprei guias de viagem. Deixei algumas pessoas chocadas com a notícia, e parti.
Quando cheguei no voo da VASP em Bruxelas às seis horas da manhã, o chão estava congelado. Escorreguei com minhas botas de bico fino da Side Walk compradas no shopping Paulista ao descer as escadas da aeronave: seja bem-vinda à Europa. Foi uma bela queda. Meu companheiro de viagem, um brasileiro que morava na Alemanha, não parava de rir. Fiz cara de paisagem. De Bruxelas segui para Bruges, e de lá tomei um ferry de Zeebrugge para a Inglaterra, destino Dover. Joguei fliperama, ouvi meus discos da Bjork e do Everything But the Girl num CD player roxo metálico da Sony, e me senti enjoada. O tempo estava ruim, chovia muito. Quando desembarcamos, a imigração me parou. Uma mulher latina jovem viajando sozinha, o que veio fazer ali? Tive que mostrar todo o meu dinheiro, revistaram a minha mochila, e enquanto separavam de lado minhas calcinhas, um tanto constrangidos, os outros passageiros sumiram. Quando me dispensaram, já não havia ônibus até a estação. Tive que pagar caro por um black cab, e ainda dei sorte de pegar o último trem de Dover para Londres. Lembro de jovens loiras e seus amigos com garrafas de bebida se embriagando no vagão.
Era New Year’s Eve, mais de onze horas da noite quando cheguei. Estava nevando, coisa rara em Londres, fazia um frio tremendo, pessoas de etnias diversas no tube, montes de gente de casaco se abraçando nas ruas, minhas mãos congeladas sem luvas, fogos de artifício explodindo no céu, uma loucura. Fiquei confusa quando cheguei em Russell Square, já quase na virada do ano. Eu ligava para o albergue, não entendiam o que dizia, o endereço era uma viela e não tinham paciência para me explicar nada do outro lado da linha. Havia um homem esperando fora da cabine telefônica, que percebeu minha aflição. Ele usava chapéu e era a cara de Anthony Hopkins, mas era israelense. Eu contei para onde ia, e ele me ajudou. Tinha certamente o dobro da minha idade. Estava em Londres para um jogo de futebol. Ofereceu-me um drink cortesia de ano novo. Respirei fundo da longa viagem, tomei coragem, e tomei uma taça de champagne com ele no bar do elegante hotel em frente à cabine. The kindness of strangers. Nenhum homem tinha me oferecido champagne antes, foi estranhíssimo. O champagne estava delicioso, mas logo após as badaladas, rumei viagem, meio desconfiada das intenções de Mr. Hopkins. Apaguei em seguida num beliche do albergue.
Londres foi extraordinário. As caminhadas pelos parques, a Tate, Chatterton, Ophelia e os seus desenhos de William Blake, o British Museum, as livrarias de Charing Cross, Camden Town, as compras pela Oxford Street. Acabei comprando até uma malinha extra para trazer coisas pois a tentação era grande, depois eu me virava para pagar meu cartão de crédito. Fiz amizade com o barman do albergue, Mohammed, que passava o dia fumando haxixe. Ele queria na verdade me vender um êxtase, afinal todo mundo tomava êxtase naquela época em Londres, segundo a revista The Face, mas eu tive medo. E não saberia como chegar na rave… Conversei e tomei cervejas com outros jovens hóspedes, um casal de lésbicas finlandesas, um rastafari marroquino, uns suecos. Uma noite fomos dançar no Wag Club e terminamos no obrigatório Bar Itália da música do The Pulp. A cidade causou em mim uma impressão fortíssima. Tive uma visão longínqua. Um dia eu ia viver ali. Um dia.
Prossegui para Paris no trem da Eurostar, para um Auberge de Jeunesse na rue Vitruve. Chamava-se D’Artagnan. Meus novos camaradas me convidaram para beber tequila na tumba de Jim Morrison no cemitério de Père Lachaise, mas achei muito adolescente para minha fatídica idade de vinte e sete anos. Eu não queria morrer como Jim. Eu queria estar sozinha, fazer anotações, perambular pela Paris literária e outros recantos. Assim alcancei uma pequena placa onde tinha morado Gertrude Stein, na rue de Fleurus, e tirei uma foto que revelei depois e coloquei num álbum. Um de meus livros preferidos é The Autobiography of Alice B. Toklas. Foi emocionante.
Meu espírito aventureiro sempre foi extensivo às expedições noturnas. Eu estava louca para conhecer a famosa discoteca de rock de Pigalle, La Locomotive, que existia desde os anos 60, também conhecida como La Loco. Era sexta-feira à noite, eu era solteira e estava em Paris! Vesti umas calças cigarrete de estampa de tartan, um collant preto de mangas longas, botinhas e meu novo casaco comprado na Topshop. Meus cabelos eram curtíssimos, à la garçonne. Pus lápis e rímel nos olhos, passei gloss, comprei uma caixa de Gauloises e desci teute seule o Boulevard de Clichy, tão Henry Miller, sem saber o que me esperava.
Estava cedo, no bar da boate havia um balcão com bancos altos, e fiquei ali fumando, fumando e olhando para o lado, quase fazia anéis de fumaça para vencer meu embaraço de estar sozinha. Et puis je fume. Pedi uma cerveja long neck. Um rapaz me olhava de longe, e depois de um bom tempo pediu para sentar-se ao meu lado e me ofereceu um drink. Ele era uma graça, tinha olhos verdes, cabelos levemente longos e um pouco rebeldes, uma argola de ouro em umas das orelhas, e uma barba mal-feita. Parecia o George Michael, só que com a pele menos bronzeada, e straight. Chamava-se Alexie, mas não falava inglês, e meu francês de um semestre de curso de línguas na universidade não ajudava muito. A comunicação se fazia por gestos, quem sabe até braille, e algumas palavras soltas nestas línguas e em espanhol.
Depois fomos dançar, e em certo momento Alexie foi ao toilette. Eu estava sentada num sofá preto de La Loco. Chegou um francês meio dândi com um lenço de seda amarrado no pescoço, pedante mas paquerador, e começou a falar comigo. O inglês dele era bom. Eu estava com sorte com os parisienses! Estávamos no meio de uma breve conversa, eu estava apenas sendo simpática e charmant, quando Alexie chegou, enraivecido. Houve um breve bate-boca entre os dois, mas não entendi muito bem o que diziam. Deve ter sido você mexeu com ma coupine, ou algo assim. Fiquei meio envaidecida, e ao mesmo tempo meio desconfortável com a cena. Continuamos dançando, bebendo e fumando, e depois saímos da discoteca. Eu estava meio bêbada e com fome, tínhamos trocado uns beijos e Alexie sugeriu ir até seu apartamento em Télégraphe para comer algo. Disse que era perto dali. Eu hesitei, ele já foi chamando um táxi. Deu um frio na barriga, mas quando vi já estava subindo intermináveis escadas em formato de caracol até um sexto andar de um prédio antigo.
Alexie foi até a cozinha, trouxe uma garrafa de vinho tinto, queijo camembert, uma baguette, duas mousses de chocolate. Sentamos no chão. Eu me sentia um pouco tonta de álcool e cigarros. Precisava comer algo. Ainda tomei um gole de vinho e comecei a me servir. O apartamento era muito kitsch, com cartazes antigos de dançarinas. Lembro de uma cabeça e torso de manequim com um chapéu e umas plumas. Talvez ele trabalhasse no cabaret de Moulin Rouge, pensei. Alexie então tirou a camisa. Ele tinha um corpo magro mas atlético, usava calças jeans apertadas, um cinto de couro marrom e umas botas meio country. Très sexy Alexie. Tenho essa imagem bem fotografada na memória, vista um pouco de longe, dentro da pequena distância física da sala. Mas havia algo vraiment méchant no seu olhar, na sua expressão quando se sentou ao meu lado.
De repente, senti um cheiro fortíssimo que não era do camembert. Vinha de Alexie, de suas axilas, do seu corpo mal lavado de inverno. Eu era sensível a cheiros. Meus instintos de sexual feeler, eu diria até mais de instinto de sobrevivência, sinalizaram o perigo naquela fragrância, naquele extrato que era másculo, mas revelava aquela violência mal contida e animalesca que percebi na discoteca. Eu só pensava num conto de Caio Fernando Abreu, de alguém que tinha o instinto de sair e descer correndo as mesmas escadas por onde tinha entrado, e ficava repassando o trecho mentalmente como um mantra. Ele pressentiu o motivo da minha introspecção. Disse que estava suado e foi ao banheiro, talvez para um asseio.
Quando o ouvi fechando a porta, peguei minha bolsa e me lancei veloz nas escadas até o térreo. Era alta madrugada, mas um táxi ia passando. Quando entrei lépida e tranquei a porta do carro, vi Alexie batendo no vidro sem camisa, como um fantasma esbaforido. Ele estava furioso e dizia ‘mais pourquoi tu partes?’ Eu respondia ‘parce que je precise’. Ele dizia em francês que não entendia. Eu repetia numa espécie de francês inventado de última hora na minha cabeça ‘parce que je precise’, com ar assustado. O chauffeur temeu pela minha segurança e arrancou. ‘Auberge de jeunesse, rue Vitruve, s’il vous plaît’.
Eu sentia agora o impacto da adrenalina no corpo, o perigo de ter ido até o apartamento de um estrangeiro, sozinha, numa sexta-feira à noite em Paris. Nas proximidades da rue Vitruve, o motorista parou. Eu apontava ‘c’est là’. Ele repetia ‘c’est interdit’. Eu repetia, aflita ‘mais c’est là’, ele falou irritado, quase gritando, ‘tu ne comprends pas? c’est interdit!’. Pedi para parar, contei os francos para pagar a corrida com lágrimas nos olhos, e desci do carro.
Saí andando desorientada. Eu estava perdida de madrugada em Paris, como um bateau îvre, sem guia na bolsa. De repente as lágrimas desceram, como uma tormenta. Solucei. Então lembrei de Sabine Dupuis, uma menina que se perde da mãe na primeira lição de francês, Je suis perdue. Le petit Sabine Dupis. Vi dois homens lavando a rua, como uma espécie de visão surrealista de um filme de Buñuel. Aproximei-me de um deles com cara de choro, disse ‘monsieur je suis perdue’. Achei que ia responder como na lição, onde está sua maman, mas ele me perguntou onde eu queria ir. ‘Rue Vitruve’. Ele respondeu ‘C’est ici!’. Eu disse então ‘D’Artagnan’. O outro apontou para o hostel em frente de mim, do outro lado da rua. Meu senso de direção sempre foi ruim. Cruzei a porta giratória do albergue, pequenas lágrimas escorriam ainda, mas tive a sensação reconfortante de que eu tinha chegado em casa.
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Virna Teixeira é poeta e tradutora, com livros de poesia publicados no Brasil e no exterior. Vive em Londres, onde dirige a Carnaval Press, um projeto editorial de poesia brasileira em tradução, além da revista online Theodora, de literature e artes visuais. Prepara, no momento, seu primeiro livro de contos.
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