POESIA É A PRÓPRIA VIDA – GRAZIELA BRUM

|ESCRITORXS DE QUINTA
Por Graziela Brum

Seria eu capaz de enfrentar a solidão? Em tempos caóticos, confrontaria a morte cara a cara? Ou ainda, em audácia, buscaria num ato insensato a cumplicidade com meus próprios assassinos? Digo isto, porque me peguei pensando sobre a importância que a poesia adquiriu na minha vida e na forma peculiar que o hábito de ler e criar poesia trouxe ao relacionamento que mantenho comigo mesma. A vida, o tempo, o sexo, a morte, ou melhor, todos os mistérios inextirpáveis da condição humana, vêm, em tempos apáticos, perdendo sua força de espanto. Em “A estética do silêncio”, ensaio de Susan Suntag, ela afirma que toda a época deve reinventar seu próprio projeto de “espiritualidade”. (espiritualidade = planos, terminologias, noções de conduta voltados para a resolução das penosas contradições estruturais inerentes à situação do homem, para a perfeição da consciência humana e a transcendência.)

Teria eu então perspicácia para diante desse mundo blasé resgatar a força das coisas perdidas por mim e por nossa época? Talvez consolidasse aqui um dilema existencial, caso a poesia não fosse minha arma erótica, na qual me entrego ao desconhecido na certeza que dali extrairei o mais genuínoabsurdo dos entendimentos. O estímulo ao desejo, que aí encontra campo fértil para as ideias e o prazer, desperta o animal que em mim habita para infringir às regras dos interditos. Poesia é sublimação, mas também transgressão. Afirmo quando em voz alta recito na sala do meu apartamento “A máquina do mundo” de Carlos Drummond de Andrade e refaço cálculos ao ver o desdobramento da vida em tantas outras possibilidades. Neste ato, a sequência de frases poéticas abre um universo intrincado pelo meio e pelo afeto na busca incessante da compreensão profunda do que me escapa aos olhos e ouvidos.

A solidão que poderia representar um perigo, então, ao contrário, ou mais do que nunca, é a chance do pensamento próprio não formatado pela proposta indecente da nossa época de nos dar o entendimento da parte pelo todo ou mesmo o incentivo para o não pensamento.

“…a máquina do mundo se entreabriu
para quem de a romper já se esquivava
e só de o ter pensado se carpia.

Abriu-se majestosa e circunspecta,
sem emitir um som que fosse impuro
nem um clarão maior que o tolerável

pelas pupilas gastas na inspeção
contínua e dolorosa do deserto,
e pela mente exausta de tentar

toda uma realidade que transcende
a própria imagem sua debuxada
no rosto do mistério, nos abismos…”

Nesse trajeto, ensimesmar-se através da poesia mobiliza excesso exponencial de energia criativa, que pode ser gasto de inúmeras formas. Recordo aqui do filme Casablanca, do diretor Michael Curtiz, sobretudo, da cena em que Ilsa Lund (Ingrid Bergman=deusa) entra no “Café do Rick” e encontra Sam (o pianista). Estamos em plena Segunda Guerra Mundial, as pessoas chegaram ao Marrocos fugindo do nazismo, o futuro é uma incógnita, mas ainda assim é possível tomar um bom drink e escutar “As Time Goes By” ao piano e na voz de Dooley Wilson. Tudo é incerto lá fora, mas aqui dentro, sou poesia.

Na mesma perspectiva, cito ainda Rosa Luxemburgo, numa passagem que traz à tona a capacidade de estar em poesia:

“ … na escuridão, sorrio para a vida, como se estivesse de posse de um segredo mágico que desmente tudo o que é mau e triste e o transforma em pura luz e felicidade. E, quando procuro dentro de mim mesma alguma razão para essa alegria, nada encontro, o que me leva novamente a sorrir – e rir de mim mesma.

Acredito que o segredo não é outra coisa senão a própria vida…”

A poesia é a própria vida.

Ainda, jogar-se nesta rotina é ativar a intuição poética, a qual estimula a produção criativa, ou seja, a construção da arte. Tal feito é curioso, já que é no explorar do poema que se encontra tantos outros ângulos de observação, que não aquele puramente referencial e direto, ou mesmo aquele pensado pelo autor, mas ainda outro que busca decifrar faces ocultas. Uma face, talvez ainda não pensada, visto que as possibilidades se ampliam na dimensão emocional e intelectual do outro, inclusive para compreender os vários níveis e contextos de exploração do mundo.

De certo, deve-se entender que a arte não tem jamais o poder de conscientizar, mas de sensibilizar, de tornar o outro receptivo as novas experiências. Nesta concepção, aqui se tem uma das maiores entregas como ser artista, quando a interlocução com o que foi criado transpõe o criador. Então, aí se tem a libertação do artista e a concepção de uma obra. A obra nunca será aquilo que o autor criou, é agora outra coisa aos olhos de quem a observa. Outra. Outrar, eis aqui um verbo importante da Literatura de Língua Portuguesa, sobretudo, na obra de Fernando Pessoa. A busca pela despersonalização como forma de estimular o surgimento dos vários outros eus, mostrando na multiplicidade da poesia de Pessoa, o caráter múltiplo do ser.

“Não sei quantas almas tenho.
Cada momento mudei.
Continuamente me estranho.
Nunca me vi nem acabei.
De tanto ser, só tenho alma.
Quem tem alma não tem calma.
Quem vê é só o que vê,
Quem sente não é quem é,
Atento ao que sou e vejo,
Torno-me eles e não eu.
Cada meu sonho ou desejo
É do que nasce e não meu.
Sou minha própria paisagem;
Assisto à minha passagem,
Diverso, móbil e só,
Não sei sentir-me onde estou.
Por isso, alheio, vou lendo
Como páginas, meu ser.
O que segue não prevendo,
O que passou a esquecer.
Noto à margem do que li
O que julguei que senti.
Releio e digo : “Fui eu?”
Deus sabe, porque o escreveu.”

O que, então, somos senão a soma dos nossos repertórios, das nossas experiências e daquilo que não nos explica? Somos as releituras e, sobretudo, as reformulações das nossas próprias histórias. De certo, há no artista a coragem para combater a imitação ou a repetição do seu eu, uma luta complexa e frustrante, uma luta pessoana. Uma luta que busca na poesia o estado de transcendência. Senão a poesia, matéria pura de estímulo, que outra forma de lutar contra a perspectiva limitada do eu individual? Seria possível a arte original desprovida de máscaras? Então, o desejo de criação e o que somos não nos cabe mais e então somos outra coisa, somos arte, poesia.

 

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Graziela Brum
é de Arroio Grande/RS. Escritora. Idealizou o projeto literário Senhoras Obscenas, o qual coordena junto com a historiadora Adrianá Caló. Participa do coletivo Escritorxs de Quinta, venceu o concurso ProAc categoria romance com o texto “Fumaça”. Publicou com Editor Lumme “Vejo Girassóis em você”. Atualmente escreve o romance Jenipará.

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