PARA ESCREVER, APRENDA A OUVIR – GAEL RODRIGUES

|ESCRITORXS DE QUINTA
Por Gael Rodrigues

Relacionar-se com escritor é complicado. Há o charme, inteligência em boa parte das vezes, e uma eloquência que nos faz sentar no banquinho enquanto de pé ele fala. E fala. Fala muito. O charme vai se esvaindo para dar vez a figura chata que sabe mais que todos, senão pior: só ele sabe.

O problema é que sou escritor. Quer dizer, há dois anos aceitei o substantivo e coloquei na biografia do Instagram. Engraçado ser necessário inscrever o que se é numa rede social que eu nem usava há 5 anos. Lembro do primeiro livrinho aos oito, mas a ideia de escrever como profissão parecia algo longe para um filho de cobrador de ônibus de cidade no interior da Paraíba. Esse ‘longe’ se mede com o tempo: precisei de terapia e alguns ataques de pânico para entender que, às vezes, os sonhos de criança são mais coerentes que a racionalidade do adulto que preferiu segurança e estabilidade financeira ao prazer do ser. Vinte e nove anos para entender o que se é.

Como cursei Direito, e por um bom tempo vivi imerso na linguagem insípida dos códigos, me senti inferior ao chegar em São Paulo e ter que lidar com artistas tão confiantes e com tanto conhecimento na ponta da língua. Eu queria aprender. Eu tinha que aprender se quisesse ser um bom escritor. Sim, por um momento fui o jovem que desdenha de regras, quer criar o próprio mundo, que não entende a crítica e prefere, como uma criança birrenta, brincar sozinho. Mas logo entendi que pouco sabia, ser um leitor compulsivo não me tornava automaticamente em escritor, e que sim, uma vida acadêmica, seja pelo conhecimento ou pela pulsão, faria falta no que eu tentava colocar no papel.  Tinha duas opções: culpar o mundo ou recomeçar.

Recomecemos. Relacionar-se com escritor é complicado. E entendi isso quando decidi recomeçar e aprender. Além de diversificar o que lia, pesquisar mais, tentei ir a cursos de escrita, eventos, encontros privados que escritores falavam. E falavam. E falavam. A boca que fala atinge os ouvidos, mas sem troca não há conexão. E é disso que eu sentia falta: conectar-me.

Quando Anita Deak e Lili Prata me convidaram para os Escritorxs de Quinta, titubeei, não fui ao primeiro encontro. Cada vez mais evitava sair de casa, desenvolvia uma fobia social, e me encontrar com escritores que passariam a noite falando o quanto são maravilhosos não me apetecia. Até que um dia, não sei bem o motivo, resolvi enfrentar meu medo de lidar com desconhecidos.

Lembro da primeira meia hora, eu tenso, me esforçando para ser simpático, não parecer louco, estou soando interessante?, suando, ops não devia ter falado essa frase, ah essa sacada foi ótima, elas gostaram. Clique. Percebi que estava falando demais. Eu era o escritor chato que falava de si. Eu não esperava esse plot twist, afinal sempre me descrevi tão bem que esqueci de olhar meus defeitos. Respirei. E passei a noite ouvindo os outros falarem. Vez ou outra complementava, dizia minha opinião, mas atento ao que o outro queria dizer. Foi uma noite incrível e passei a encontrar o grupo todas as quintas.

Todos os componentes do grupo são bem diferentes. Uma defende a literatura no seu mais alto nível, outra num viés mais selvagem e sentimental, outro gosta de não ficção, outro mistura prosa com ensaio, outra é intimista, outro explosão e Grazie ama poesia. Eu amo Grazie. E amo cada ‘outro’ por me fazerem entender que a literatura é plural e posso aprender com cada um.

Durante 2018 escrevi o “Pare de tentar me fazer feliz” enquanto ouvia o que cada um tinha a dizer. Posso garantir que dessa multiplicidade surgiu, até que enfim, minha própria voz. A voz que tanto insisti em fazer nascer por meio da exaustão do falar, germinou sem que eu percebesse, depois de tanto escutar, digerir, e esperar pacientemente pela sua reverberação natural. Ao invés da boca, saiu nos dedos que ora anotavam ideias no caderninho ou teclava ansioso no computador. Minha voz pululando em 340 mil caracteres.

O exercício do ouvir cada vez mais tem se ampliado. Ouço os colegas de trabalho que falam atrocidades, minha irmã que conta as últimas proezas de minha afilhada de um ano, as conversas de desconhecidos na rua ou ouço minha mãe. Numa terça-feira de novembro de 2018, no mar em João Pessoa, ouvi por uma hora mainha falar sem parar. Tentei conter o choro diversas vezes. Qual a última vez que tinha ouvido minha mãe? O monólogo dela se transformou nas linhas (incluí no romance) de que tenho mais orgulho de minha curta carreira. Num livro em que só o protagonista fala, uma mãe perto do fim abre travessão para si e só o encerra depois de três páginas. Três páginas que só foram possíveis porque aprendi a ouvir. Que venham novas lições.


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Gael Rodrigues é paraibano de 33 anos. Seu romance ‘Terra Laranja’ venceu os Prêmios Literários da Fundação Cultural do Pará em 2017 e o juvenil ‘A menina que engoliu um céu estrelado’ ganhou o prêmio CEPE 2018 (além de ter sido finalista dos prêmios CEPE 2017 e  Barco a Vapor 2018).

:: Dibujo: Federico García Lorca