|ESCRITORXS DE QUINTA
Por Marcelo Ariel
Ser a pergunta, a sede
O que significa para você escrever e como você se sente sendo uma escritora africana?
“ESCREVER para mim, significa dar vida, dar existência, dar significado, dar poder… Porque escrever é isso, é ser você sobre um papel e uma caneta, escrever é encontrar a paz mesmo que ela não exista… Escrever para mim é tudo isso é muito mais. (………) Bem, primeiro dizer que ser-me-a um pouco difícil responder esta questão, estou em processo de revelação, ainda sou pequena na poesia e como escritora. Mas ser uma escritora africana hoje é dar um passo satisfatório, porque a África já pode produzir e consumir a sua própria escrita, embora não seja notório o consumo de nossa poesia. Eu ainda sou Amadora, razão pela qual, não posso ainda ter uma resposta clara do que é ser uma escritora africana hoje.” – Dora Manuel Kulabo, professora e escritora moçambicana
” a internet já foi a África”
Paulo Scott no poema TELESCÓPIO
A falsa distância entre o Brasil e a África impede o Brasil de se tornar ele mesmo. Já podemos nos curar de tantos vícios coloniais, principalmente desses que se propagam em rede mais rápido do que o tempo que levaríamos para elaborar um pensamento nítido sobre o que vemos nas ruas. A falsa distância entre o leitor e o escritor impede a literatura de se tornar ela mesma. Já podemos nos curar de tantos vícios coloniais, principalmente desses que se propagam em rede mais rápido do que o tempo que levaríamos para elaborar um pensamento de alteridade sobre o que vemos nas ruas. Esforços afetivos no lugar de memórias afetivas talvez convertam a autoficção em um reducionismo redundante da ficção-vida que enreda tudo e todas as coisas contaminadas pela linguagem humana. É possível que a grande via de acesso ao humano seja o não humano e que nós, escritores e escritoras, sejamos os responsáveis pela decifração dessa senha. Apesar de tudo o que poeticamente ou matematicamente a ciência diz, a natureza não pensa por esquemas, e, se quisermos acessar essas senhas escritas em linguagem desconhecida em nosso corpo e fora dele, teremos de abandonar todos os esquemas que aprendemos por imitação e projeção, e retornarmos a uma forma desconhecida de oralidade muito próxima das paisagens de nossos sonhos mais profundos e, ao trocarmos a ficção pelo sonho, estaremos misteriosamente mais próximos de um Devir-África e distantes de um Devir-Eurocêntrico-Norte-Americano. Atenção, estou falando do modo como escrevemos, há uma pergunta essencial escondida neste texto, para uso dos que desejam o erro e a indiscernibilidade, como quem, depois de dias no deserto, deseja a ———-.
Os limites da resenha
Começo com uma mentira, não irei fazer nenhuma explanação, nem defender nenhuma tese sobre a tensão entre o ensaio, o artigo e resenha. Um dos três deixará de existir mais cedo do que desejamos ou merecemos. Tentarei fazer uma resenha entrelaçada de dois livros, uma resenha híbrida portanto, ou, se preferirem, uma resenha mestiça. Será que isso é possível?
GAPORABA MONSTRO TUBARÃO de Paulo Scott (Demônio Negro, 2019) e A MUSA EM EXÍLIO de Joseph Brodsky, Trad. de Diogo Rosas (Âyné, 2018)
Resenhas são limitadas pela burocracia da linguagem jornalística, com suas demarcações para o incêndio do pensamento; nesse quesito, o quase extinto jornalismo flerta com os formalismos jurídicos do academicismo formal – eis uma limitação. Tentemos romper esses limites, porque sem eles a resenha chegaria ao mesmo lugar inominável do conto; um dia, no futuro, alguém irá chamar o Ulysses de Joyce de intrincado conto-puzzle. Perdoem a digressão, não somos objetivos como snipers, isto no fundo é uma conversa escrita em forma de monólogo; ainda não morri, logo, posso ser encontrado e respondo e-mails. Com vocês: a resenha mestiça.
Há um instigante uroboro no livro GAPORABA MONSTRO TUBARÃO do escritor negro brasileiro Paulo Scott, cuja ponta está na orelha de João Gilberto Noll, que reproduzo a seguir:
“Uma aparição monumental na poesia do Rio Grande do Sul é a do Paulo Scott, com versos avessos, oblíquos. Disse para o Scott: ‘Às vezes te vejo e tenho medo de ti, medo do que fazes na literatura.’ De tão maldizer dizendo. De tão às vezes combinar as palavras e, nessa combinação, criar um rastilho de pólvora em vez de concatenação. É uma literatura bastante insólita na poesia. O discurso poético do Scott já é uma antilírica, até.”
Não como uma resposta, mas como algo maior, o poema que abre o livro é dedicado a Noll, poema que abre a seção intitulada LIVRO DO OUTRO. Não irei reproduzir o poema, que resvala no intocável e delicado instante em que uma coisa misteriosa e delicada se esvai no horizonte (é um acolhimento de paradoxos essa nossa vida, não é mesmo?).
A poesia de Scott me dá uma alegria, e há algo de sombrio na alegria, diz Brodsky em uma das muitas entrevistas reunidas em A MUSA EM EXÍLIO. Acho estranho que ainda não tenha sido relançado o extraordinário livro de ensaios dele MENOS QUE UM, há algum problema no departamento de reedições da Companhia das Letras que explique esse fato? Bródsky é, de certo modo, o continuador de W. H. Auden; os poemas dialogam entre si mais do que os poetas, e isso não é algo que deveríamos lamentar, mas os poetas poderiam ser mais convocados ao pensamento em voz alta – eis algo que fica no ar, como um vagalume, após a leitura das entrevistas reunidas de Bródsky, um dos acertos do Nobel em décadas. Trata-se de um poeta das melancólicas profundezas que sabe dobrar a ironia e retirar dela qualquer ilusão de poder, mantendo, em seus versos, uma crítica ao poder, o que explica o exílio exterior, porque o exílio interno é uma das condições para que alguém se reconheça como poeta. Exílio no próprio país, eis uma das chaves para apreender o que diz o grande João Gilberto sobre os poemas do Scott, falando um pouco de si mesmo, também.
Falar do outro como uma via de acesso ao si mesmo: esperemos que poetas & psicanalistas concordem entre si, como o dia e a noite. Voltando ao livro do Scott, o poema que abre a seção LIVRO DO MUNDO é dedicado a este que vos escreve e é neste ponto que evoco os limites de uma resenha, porque o chamado ‘campo da cultura’ é regido por forças de desvelamento, por esforços do afeto que se convertem em desejo de maravilhamento pela alteridade, pela beleza da alteridade, o que é exatamente o contrário do que estamos vivendo no Brasil hoje. Exatamente por esse motivo, o diálogo entre poetas deve ser desvelado: poetas são como indígenas, são parentes, são irmãos em semelhança por alteridade. Por tudo isso e justamente para romper os limites da resenha e da política da resenha, abrimos espaço para que o poema fale por si.
ARIEL
para os outros era a certeza
da tua inclinação cômica
tua entretela inofensiva
teu desjeito natural
vasilha ( do segredo) do próprio silêncio
dos pedidos parte da inundação
impressa em teu peito – alagamento
das vezes em que não lutou
como alguém de coragem lutaria
não quer somatório
não quer vingança
teu esforço é para chegar ao estrago
e ( invisível) remanescer
e o meu olhar na tua lembrança é parte da chuva
da chuva onde também está o julgamento
que te alcançou – onde recolho tuas receitas
teus pratos e canecas
teus post-its espalhados nas pétalas
e na palavra pétala
almoço os restos do que você deixou
Paulo Scott, GAPORABA MONSTRO TUBARÃO, pág.41
Passar despercebido como a brisa: agradecer.
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Marcelo Ariel é poeta, performer e teatrólogo. Autor de “Jaha ñade ñañombovy’a (Penalux), entre outros livros, lança em breve “Ou o Silêncio Contínuo” (Kotter Editorial), com sua poesia reunida.