O RETORNO DOS MORTOS – MARCOS VINÍCIUS ALMEIDA

|ESCRITORXS DE QUINTA
Por Marcos Vinícius Almeida

I

“Um pai velou dias e noites ao lado da cama de sua criança doente”, escreve Freud, no sétimo capítulo de A interpretação dos sonhos. “Depois da criança ter morrido, ele se deita em um quarto vizinho para descansar, deixando, no entanto, a porta aberta, de forma a poder olhar, de seu quarto, o quarto no qual o corpo da criança se encontra, estendido e rodeado de grandes velas. Um senhor idoso foi chamado para velar também e encontra-se sentado ao lado do corpo, murmurando preces. Depois de algumas horas de sono, o pai sonha que a criança se encontra ao lado de sua cama, o segura pelo braço e sussurra de modo repreensivo: ‘Pai, você não está vendo que estou queimando?’ Ele acorda, percebe uma luz clara que vem do quarto do defunto, corre até lá, encontra o velho vigia adormecido, os invólucros e um braço do precioso corpo queimados por uma vela, que caíra acesa sobre ele.” [1]

Um dos grandes enigmas ao redor desse sonho, exaustivamente comentado pelo próprio Freud, retomado por Lacan e seus seguidores – algo que vai além do meu conhecimento, e mesmo extrapola meu objetivo aqui –, é justamente o fato de a consciência usar o sonho, que protege e prolonga o sono, para dar um aviso, ao invés de simplesmente despertar para o real. O clarão das chamas caindo sobre os braços do cadáver, captadas pela retina do pai que dorme no quarto ao lado, deveriam arrancá-lo da cama num golpe. Misteriosamente, prolongando o sono, os feixes de luz desdobram-se na figura de um fantasma que vem proteger seu próprio corpo, no enredo de um sonho. Essa aparição, que não apenas fala, mas interroga e impele, é o que de fato me interessa nesse caso. Uma poderosa imagem, uma poderosa metáfora.

II

Jacques Rancière, no seu ensaio Os nomes da história, diz que o historiador é um necrófilo. A morte é condição de possibilidade da história. A morte está prenhe de temporalidade está explodindo em pura historicidade. Assim como o arqueólogo escava o interior da terra, recolhendo restos de ossos e cacos de urnas funerárias, que chegam a sua mão, a paixão que conduz a historiografia ao seu objeto é o diálogo com os mortos. É sempre da morte que se fala quando se fala de história. Catacumbas, lixeiras, resíduos, práticas necromantes, arquivos do mal, traumas de guerras. O surgimento da história, ou seja, o surgimento da ruína, instaura a busca por tudo aquilo que perece, definha, acaba e escapa. É a última pá de cal na metafísica. No reino dos santos, da ontologia do ser enquanto tal, há apenas um cenário estático e pacífico estendido desde sempre como um velho lençol manchado de tinta num teatro sem conflitos. E aquilo que se anuncia hoje como “pós-histórico”, ou “a morte da história”, não é outra coisa senão um retorno diluído e desesperado ao princípio imóvel de Aristóteles. O que morreu, na verdade, foi a história dos monumentos grandiosos, a história universal, a história da nação, a história dos grandes heróis, dos grandes gênios, espíritos elevados, pairando sobre a humanidade em geral.

III

É o fantasma do menino morto que vem até o pai. Vem proteger seu próprio corpo, vem proteger o pai, “no momento de um perigo”. Não é o historiador, milagrosamente higienizado das contaminações do presente, que mergulha no passado, o descreve, arrancando de lá seu tesouro tal e qual. É o passado que relampeja no presente, ganha legibilidade, no momento de um perigo, num ponto crítico, como numa recordação. Por muitos séculos se acreditou que nossos olhos iam até as coisas e as tornavam legíveis. Como se o olhar disparasse um misterioso feixe de luz que iluminasse a paisagem, a pedra, a saliva nos lábios da pessoa amada. O avanço da óptica inverteu esse processo, diz Benjamin, numa espécie de revolução copernicana: é a luz que vem até nós. É necessária uma revolução copernicana da história: é passado que chega, que retorna, depois de morto.

IV

Só existe história anacrônica, afirma George Didi-Huberman. Ou seja, das coisas fora do seu tempo. A dor, a catástrofe e o lamento sempre se desdobram para fora de sua época. O trauma sobrecarrega a consciência de tal forma que, incapaz de lidar com excesso de real, defende-se recorrendo à irrealidade, ou seja, ao estado de sonho, prologando o sono.

V

Grande leitor de Benjamin, Didi-Huberman vê na sobrevivência uma poderosa categoria para pensar as relações entre o passado e o presente. Para além da lógica linear da causa e efeito, esteio do Positivismo, para longe de qualquer metafísica ou ontologia e, ao mesmo tempo, evitando o horizonte de qualquer teleologia, essa memória da violência histórica salta de modo descontínuo diante de nós, como a aparição de um sintoma, como um fantasma que nos assombra.

VI

A dinâmica da história é uma dinâmica duas faces: catástrofe e sobrevivência. Histórico é tudo aquilo que, de um modo ou de outro, atravessou o tempo e a morte, sobreviveu a catástrofe: estilhaçado, desfigurado, triturado e, principalmente, recalcado. Algo que não mergulhou no esquecimento absoluto. Entre os índices concretos da sobrevivência, além da voz testemunhal de quem atravessou a morte, estão a ruína, o resto, os rituais fúnebres, as cinzas, o lixo, os ossos e os detritos. Aquilo que sobrou. Fulminado e esmagado pelo tempo, resistiu, fora de sua época, ou seja, enquanto objeto anacrônico. Um espectro, um cemitério em ruínas, um sítio arqueológico – material e imaterial – que retorna, à revelia da vontade particular ou coletiva, ao presente. Chega até nós.

VII

Nas ruínas, na pilha de detritos, os restos se misturam, as épocas nos chegam todas juntas, encavaladas. Se parássemos para escutar, poderíamos ouvir um coral fúnebre, o canto dissonante, sobreposto, dos mortos. O que eles nos diriam, se pudessem falar? Quando as mais antigas máscaras tribais, com seus traços arcaicos e representando os espíritos dos mortos, chega ao ateliê de um Picasso ou Duchamp, há o despertar da vanguarda. Os românticos – apaixonados pelas ruínas de castelos cobertos de limo, pelos cemitérios de lápides sem nome, nas quais brotavam raízes –, fundiram as velhas construções de outrora ao mundo natural. O que nasce desse encontro, dessa paixão pela ruína, é a forma literária do fragmento e as metáforas que humanizam as pedras e as rochas. Os renascentistas, impactados pelas simetrias das ruínas da antiguidade, são obsessados pelo espírito da razão. É Descartes, trancado sem seu quarto, meditando a exaustão, o grande demolidor dos monumentos de seu tempo. Ou seja, um completo desajustado. Um espírito livre, sempre anacrônico, é aquele que olha os grandes monumentos de sua época e consegue antever o colapso, a ruína, a desolação, enquanto seus companheiros apenas exaltam a grandiosidade e a perenidade do ser: contemplam os objetos, um sistema de valores, que são contingentes e precários, como se fossem eternos. Curvam-se e veneram. Feito os fanáticos.

VIII

Um andarilho que revira a lixeira do tempo, junta os trapos da história, não rejeita as formas rejeitadas. É um apaixonado pelo detalhe, pela forma vulgar, não teme se perder no labirinto da contingência. Aquele que, deitado na sarjeta dos grandes movimentos históricos, recolhe o que sobra. É esse andarilho que será despertado por um fantasma. É esse andarilho, que escuta vozes, o poeta que cantará nossa época.

 

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Marcos Vinícius Almeida
, escritor e jornalista, é autor do volume de contos Paisagem interior (Penalux, 2017).

[1] A citação de Freud é extraída do ensaio “Modalidades do despertar traumático”, de Cathy Caruth, que compõe o livro Catástrofe e Representação (Escuta, 2000), organizado  por Arthur Nestrovski e Márcio Seligmann-Silva.